【A loucura não é identidade, nem condição, nem afecção】

'Esses homens de desejo (ou então ainda não existem) são como Zaratustra. Eles conhecem sofrimentos incríveis, vertigens e doenças. Eles têm seus espectros. Eles têm que reinventar cada gesto. Mas tal homem é produzido como um homem livre, irresponsável, solitário e alegre, capaz, em uma palavra, de dizer e fazer algo simples em seu próprio nome, sem pedir permissão, um desejo que nada falta, um fluxo que cruza obstáculos e códigos, um nome que já não designa mais nenhum self. Simplesmente deixou de ter medo de ficar louco'. Deleuze & Guattari, “O Anti-Édipo”

Reconheçamos e reivindiquemos a(s) loucura(s) “intrínseca(s)” – à qual este texto se refere – por sua resistência no campo filosófico e social à Razão hegemônica; pensamos em outras formas de loucura como produções de certos estados de coisas, estes últimos que no capitalismo tiveram uma ampla notoriedade atribuível às condições políticas e econômicas que o próprio capital gera na sociedade. Embora tente-se objetivar a loucura – e com certo sucesso social – como “doença mental”, com os fundamentos e as intenções próprias das sociedades de controle de Gilles Deleuze (portanto não científicas), ela – a loucura – permanece um dos medos intraduzíveis dos tempos modernos; o louco é uma fenda perturbadora na suposta ordem de coisas que as instituições de higiene pública defendem, especialmente a psiquiatria.

Pensemos no louco como a reapropriação política do que pode soar na mídia em termos depreciativos, algo semelhante ao que fazem o termo “bicha” do movimento queer, mas não configuremos a loucura: a pessoa louca não é uma identidade ou condição, primeiramente porque as identidades são atribuições e ao mesmo tempo construções de violência simbólica baseadas em regimes políticos. Além disso, uma identidade funciona como suporte de traduções normativas e políticas para seu controle e regulamentação, o que naturalmente não está tão distante da ideologia médica dos “doentes mentais”, apenas que neste caso os aparelhos de verificação são de tipo normativo-social. A conquista do reconhecimento da “identidade” por parte dos movimentos que se apresentam como antagonistas é facilmente codificada e absorvida pelos desdobramentos do poder dominante justamente porque a identidade é funcional e tem um lugar no paradigma da diversidade, de onde procura homogeneizar todas as diferenças e pontos de fuga da Norma sob esta cortina ocidental e servil ao status quo do “diverso”, convertendo diferença ou dissidência em diversidade para a controlar, a mediatizar e e regular. Como entendemos o louco como um agente simbólico de resistência à Razão, não queremos transformar o louco em uma identidade funcional aos suportes dessa mesma Razão: em outras palavras, não queremos a normalização midiática e social da loucura, justamente porque seu simbolismo crítico é sua própria diferença irracional. Também não encorajamos o pensamento da “loucura” como uma condição, partindo da premissa de que a “doença mental”, com suas falácias associadas e como uma patologia biopolítica, já é entendida a partir do discurso psiquiátrico como uma condição clínica. De fato, isso mesmo argumenta-se que as alterações da subjetividade são aflições e como tal requerem soluções clínicas. Se a loucura fosse entendida como uma condição social, ela atrairia uma série de perguntas que serviriam para objetivá-la.

A loucura “intrínseca” não deve ser uma identidade, nem mesmo uma condição, mas deve ser armada, politizada e aceita como um produtor de subjetividade, como um conhecimento enigmático estranho à Razão e à Norma. O louco não será uma pessoa afetada por uma doença inventada por razões políticas: doença mental. O louco não possui aflições, mas elas são produzidas, transformando-o em um “doente mental”, um escravo de sua própria estigmatização social; os medos são implantados nele, dispositivos de biopoder químico agem sobre ele: drogas, que trazem ressacas e outros efeitos sociais. Ao transformar na subjetividade dominante a loucura e a diferença em patologia, como consequência, produzem-se aflições sociais, mas a loucura em si não é uma aflição.

Escrito por Colectiva Antipsiquiatría