Sobre ser demigênero (demimoça) e não encontrar acomodação no termo isogênero

Um texto relacionado com a minha experiência pessoal em identidade e modalidade de gênero, mencionadas ao título, e que só foi possível pela produção recente de pessoas da colorides em torno desses assuntos. Pretendo voltar nesse texto ainda pra expandí-lo conforme o amadurecimento do meu entendimento e de questões internas também!

Na minha experiência, eu sinto que minha “inadequação parcial” tem mais peso e dialoga mais com uma experiência transgênero do que isogênero. Por isso adoto o termo transgênero, no que se refere à modalidade (não confundir com a identidade).

Eu sinto também que essa é uma discussão mais densa e talvez similar com a discussão sobre “alinhamento” de gênero e como essa terminologia pode ser ou não inadequada porque, principalmente no caso de pessoas demirapaz e demimoça, a questão da meia relação com um gênero pretensamente atribuído ao nascimento não é a única experiência válida e a definição mais popular de isogênero meio que vai colocá-la em destaque... isso é tão equivocado quanto, por exemplo, o pensamento de que bigênero se refere apenas a uma experiência do tipo binômio mulher/homem, guardadas as devidas diferenças com relação à discussão sobre modalidade.

Mas é algo que preciso entender melhor mesmo dentro de mim (no sentido de saber até que ponto uma identidade demimoça me serve, visto um sentimento de inadequação parcial muito maior do que o de adequação parcial). Ainda assim, nenhum outro termo (com exceção do que cunhei eu mesme – pontegênero) explica melhor a minha relação com o gênero pelo qual me identifico, nem mesmo qualquer subset do termo demimoça.

Seja como for, ainda não estou em condições de abrir mão de uma identidade demimoça e nem acho que a mesma não esteja dialogada com uma experiência de modalidade transgênero, uma vez que esses “movimentos internos” entre disforia e euforia podem variar bastante na minha experiência (como um conflito eterno que encontra momentos de “paz” com pouca frequência e em períodos muito breves). Mas com isso também não quero levar ao raciocínio de que uma experiência transgênero só possa ser definida pelos sentimentos de “inadequação” e “disforia”, porque eu mesme não acredito nisso.

Minha aproximação com o termo demimoça

Aviso de conteúdo: relato de experiência e descrição de sentimentos relacionados com disforia de gênero, transtornos alimentares e danos que causei a mim mesme... eu só estou “despejando” o que vivi de mais marcante com relação ao gênero com o qual me identifico aqui, sem me preocupar se tô escrevendo “bem” e sem me preocupar com o que pensam ês acadêmiques de gênero, as autoridades nesse “campo de pesquisa”.

Eu só compreendi que era uma pessoa não-binária muito recentemente e foi um processo doloroso porque, quando você toma contato com uma discussão mais organizada (piles própries sujeites interlocutóries dessas experiências) sobre essas questões, você lê sua vida retrospectivamente à luz desse novo conhecimento. E, no mínimo, almeja que tal conhecimento já estivesse disponível/acessível a você há mais tempo, contribuindo pra que você pudesse racionalizar certas experiências e evitar certas dores.

É uma tomada de consciência de algo que “sempre esteve lá”, ainda que você não soubesse exatamente como explicar com palavras. No meu caso, isso se “materializa” por uma experiência marcante, mas não a única, durante a infância: o fato de ter sido uma criança obesa até a adolescência. Mas vamos explicando por partes como isso se relaciona com não-binaridade e, principalmente, com a demigeneridade (e ser demimoça), considerando também o fato de eu ter sido uma pessoa designada “f” ao nascimento.

Como se sabe, crianças não possuem gênero e – de fato – eu nunca compreendi muito bem até pelo menos os meus 9 anos a distinção que a escola fazia entre “meninos” e “meninas”. Ao mesmo tempo em que essa (pretensa) distinção estava presente e era institucionalizada (reforçada) pela escola e pelo mercado que envolve a educação formal (existia e ainda existe, por exemplo, banheiro “feminino” e “masculino” e a produção artificial de “demografias” do material escolar “para meninas” e “para meninos”), essa mesma escola “socializava” (não gosto desse termo, mas me falta um melhor) as crianças como todas iguais.

Lembro, por exemplo, das pessoas responsáveis pelo pré-escolar colocando todas as crianças juntas pra tomar banho no mesmo banheiro ao mesmo tempo, porque era o único com chuveiros disponíveis, a despeito do binário; da organização de datas festivas como o natal, em que as crianças passavam uma noite na escola e dormiam todas juntas – isto é, não havia uma preocupação de separar por (pretensos) dois gêneros em salas diferentes (como dormitórios) e nem existia obviamente nenhuma conotação sexual ou preocupação nesse sentido na “hora do banho”. No intervalo de aulas e na educação física, pelo menos até certa idade, disputávamos brincadeiras ou esportes em times mistos (queimada, volei, handbol e futebol...).

Ainda com relação à escola, os eventos que sempre e que mais movimentavam a gente como crianças e jovens – porque também éramos envolvides no trabalho e nos esforços de organização – eram justamente os eventos em que se “joga” com fluidez e/ou inconformidade gênero, isto é, momentos em que não conformar o gênero atribuído no nascimento era algo de certa forma “celebrado” no Brasil: carnaval e festa junina. Sei que mesmo esse tipo de evento é passível de problematização, já que a sociedade normativa também tenta institucionalizar um único vetor de significação dessas experiências e que relega toda possibilidade de uma existência diversa em termos de sexualidade e de gênero nesses momentos a um lugar subalterno, para o campo do risível, da chacota.

Mas falando honestamente, quem de nós, quando crianças e/ou adolescentes, millennials, lia a situação politicamente naquele momento? Eu e mis amigues só estávamos vivendo, nos divertindo e sendo felizes, livres dessas amarras de gênero ambíguas (ao mesmo tempo que estão presentes e institucionalizadas, são frouxas demais na primeira infância – ou pelo menos foram na minha geração, ou para mim). Então é como se um conflito tácito também se estabelecesse, e reconheço, porque nem tudo na minha infância e adolescência foram flores ou um paraíso da euforia de gênero, como explicarei mais adiante.

No ambiente familiar, lembro do hábito de tomar banho com meu pai ou com minha mãe ou com minha avó paterna durante a infância sem que isso suscitasse absolutamente nada em termos de diferenças sexuais pra mim. Eram só corpos (e eu nem entendia direito o que eram corpos), só pessoas (e eu nem entendia direito o que eram pessoas), e a diferença corporal que mais se acentuava ou que eu mais notava, como criança, era a altura delus (risos), por exemplo. Éramos mais diferentes entre nós em termos de altura (literalmente, eu não tinha noção do que era idade ou de distinção etária) do que de diferenças sexuais e eu também nunca as reparei com relação a elus (dentre elus).

Esse tipo de entendimento e sentimento mais geral de diferenciação social (no sentido de ser promovido pela sociedade normativa) só vai começar pra mim conforme eu vou crescendo e, em grande parte, por influência da mídia a que eu estava exposte naquele momento (televisão, quadrinhos e revistas pra público adolescente – produtos que são ou foram extremamente generificados no ocidente pra minha geração, a exemplo da música pra consumo “feminino” ou “masculino”, da moda e brinquedos direcionades nos programas infantis ou de desenhos à segunda infância, revistas comportamentais adolescentes do tipo “capricho” e “atrevida”, etc).

Como uma pessoa designada “f” ao nascimento, eu senti em alguma medida um direcionamento comportamental promovido por tais mídias, mas por ter sido uma criança e adolescente gorde (obese), esse tipo de inserção que eventualmente sofri num gênero a que fui designade sempre foi algo parcial e incompleto. Existe um debate no sentido de que pessoas gordas “perdem” o gênero socialmente, são vistas apenas como “pessoas gordas”. No meu caso, como criança gorda (obesa) eu “perdi” o gênero duplamente (por ser criança & gorda, por nunca ter me relacionado fortemente com feminilidade, etc), embora tenha participado nesse gênero de forma incompleta, “pela metade”, numa experiência que pode ser a de uma pessoa demimoça.

Em termos mais concretos: quando brincava com outras crianças (que foram designadas “f”) de “ser a personagem tal do produto cultural tal” (role play de meninas superpoderosas, três espiãs demais, clube das winx, garotas do RBD, coisas assim), seja na família (pouco frequente porque quase não tive contato com crianças da família, exceto em aniversários e festas de ano) ou na escola, eu sempre “ficava” (as vezes literalmente ficava “com aquilo que sobrava”, “com aquilo que ninguém queria”, mas às vezes eu escolhia ativamente porque gostava e me identificava mesmo com essa “meia performance”) com as personagens mais “tomboy” do rolê, as menos femininas, as que de alguma forma não conformavam gênero completamente.

E nunca foi como se eu odiasse isso (participar do gênero “pela metade”), mas também eu sei que pras outras crianças designadas “f” isso era uma forma de me colocar num lugar de subalternidade, uma forma de concessão parcial, de permissão parcial ao gênero. Como esse tipo de experiência, vivi outras. E repito, não é como se eu não sentisse nenhum prazer em não ser completamente do gênero que me atribuíram, mas também não era como se eu não soubesse que por dentro desse tipo de situação não existisse uma opressão de pessoas cis contra mim.

Mais tarde, esse tipo de pressão me levou a transtornos alimentares e uso de laxantes pra emagrecer (não foram a única causa do meu emagracimento) e pra me enquadrar na forma que alguém do gênero a que fui designade ao nascer idealmente “precisa ter”. Mas nem toda a experiência que me levou a conformar gênero designado foi necessariamente traumática, embora eu nunca tenha sido uma pessoa com uma relação forte com feminilidade ou com o gênero que me foi designado ao nascer (que também não são coisas sinônimas).

Somado a essas questões, sempre tive, durante a infância e adolescência, muito contato com mídia mais ao leste da Ásia em que pude enxergar uma representação positiva (ou ao menos alguma representação) de “meios gêneros”, ou de gêneros considerados estranhos demais, ou pouco conformados a uma noção de binário presente no ocidente (animes como Ranma ½, por exemplo...). Não que isso não fosse algo presente na mídia ocidental (me lembro de assistir a novela “LaLola” no SBT e vibrar, me emocionar mesmo, com um plot de gender swap, por exemplo – embora seja possível problematizar a narrativa), mas sempre foi algo muito menos aparente, pelo menos pra mim. E convenhamos, no leste da Ásia existiam e ainda existem demografias inteiras voltadas pra plot de gender bending. Isso sempre me comoveu, no sentido de encontrar um refúgio, uma identificação, a ponto de me projetar e sentir o que hoje entendo por “euforia de gênero”.

Essas são algumas das experiências, não todas, que me fizeram ler recentemente a minha vida como a vida de uma pessoa trans não-binária demimoça, nessas experiências eu consigo observar um movimento mais complexo entre momentos de disforia e euforia de gênero, entre momentos em que escolho minha identidade livremente e a performo livremente ou outros em que a sociedade normativa dita quem eu devo ser (de forma frouxa, na minha experiência, mas presente).

Não é algo fluido (como o sentido do movimento num gradiente) e nem fluxo (permanente, mas com variação de intensidade), não uso essa terminologia. É como um conflito de metades mesmo (ou de partes, pode ser mais de duas), como relações que se estabelecem entre uma coisa e outra ou como algo que se encontra numa intersecção muito única e particular. É um significado que quero e que consigo atribuir à minha vida nessa questão de gênero, mas não é a única experiência válida entre as pessoas que usam e/ou que podem usar um mesmo termo (como demimoça). No fediverso gringo, aliás, eu pude tomar contato com mais pessoas demimoça e a frequência maior que eu observo é de demimoças que voluntariamente relatam que não tiveram o gênero “f” atribuído no nascimento. Somos todes válidas.

Publicado às 22:46h.