#000693 – 22 de Julho de 2021

Ainda assim, é impossível deixar de olhar para o dinheiro com desconfiança. A ficção científica pode ajudar a criar um cenário que isola os perigos de uma sociedade completamente mercantilizada. Imaginemos que uma das actuais empresas privadas que começou a investir no espaço consegue colonizar a lua. Há uma pequena base, com recursos limitados, ainda muito dependente do que vem da Terra: matéria prima, comida, água, oxigénio. A população é pequena, composta de trabalhadores contratados. A dado altura, talvez passados séculos, começam a autonomizar-se alguns grupos. Algo semelhante já foi imaginado por Kim Stanley Robinson, na sua trilogia sobre a colonização de Marte. Digamos então que a empresa que continua a ser proprietária da base lunar entende que tem direito a controlar tudo o que se passa na lua. Esta empresa defende que ninguém pode usar recursos na lua fora da economia que ali foi estabelecida. A forma mais simples de controlar as acções dos que anseiam por mais liberdade seria usar a dependência do oxigénio trazido da Terra para sobreviver. Bastava subir os preços astronomicamente ou mesmo recusar vender oxigénio aos rebeldes.

Se isto nos parece cruel é bom sinal. É porque por enquanto ainda achamos que ninguém tem o direito de privar outro ser humano de respirar. É que quanto ao acesso à água e à comida, há muito nos habituámos a semelhantes crueldades. O dinheiro permite-nos alienar da violência que estrutura as relações entre mercado e vida pessoal. Os hábitos de hospitalidade de que a maior parte dos povos se orgulha (oferecer comida como cortesia, dar abrigo a um viajante, oferecer água) terão surgido quando a sobrevivência não dependia do dinheiro. Provavelmente mesmo antes de existir dinheiro. Não era esperado de um desconhecido que pagasse com moeda a bondade de não o deixar passar fome. Embora a gratidão se pudesse manifestar e fosse bem-vinda. A ideia simples, mas com consequências muito vastas, que o dinheiro que temos representa o nosso trabalho, que o mede e demonstra, para muitas pessoas fundamenta outra ideia: a de que não ter dinheiro é evidência da falta de mérito pessoal. E o círculo completa-se quando os Darwinistas Sociais, por exemplo, defendem que se alguém não tem dinheiro para comer ou pagar despesas de saúde é porque não o merece.