Pandemia à Deriva

Meu plano original era começar escrevendo sobre cinema. Tive que abortar meu primeiro texto por uma série de razões, a principal delas foi eu ter descoberto que não queria falar sobre cinema agora. O que eu queria mesmo falar era sobre o jogo polêmico que está me prendendo durante semanas – Death Stranding, de 2019.

Sam olhando para uma cratera, com 5 almas ao fundo e o título do jogo ao centro

Ele divide muitas opiniões desde o seu anúncio e discussões permanecem até hoje, com menos intensidade. Já adianto que faço parte do grupo que adorou o jogo. Nunca antes tinha jogado algo cuja temática influencia na própria estrutura da jogabilidade, isto é, o próprio ato de jogar reforça a mensagem que o jogo quer transmitir. É como se o próprio ato de você ir ao cinema assistir a um filme fizesse ele ter muito mais impacto e fazer muito mais sentido (acho que o mais próximo disso que temos é Marighella, em cartaz agora).

Acredito que a arte tenha o poder de transcender paradigmas, preconceitos e barreiras que as pessoas se colocam para novas ideias. Uma obra de arte consegue sorrateiramente despertar emoções e pontos de vista que você talvez não se permitiria enxergar normalmente. E após tantas tragédias em tantos âmbitos que surgiram e ficaram à nossa deriva com a pandemia, mais do que nunca devemos nos questionar: para onde queremos ir? Que legado, que sociedade queremos deixar? Que lições podemos tirar?

E é por isso que hoje considero Death Stranding uma obra não só recomendada, mas necessária para todos que viveram a pandemia. Ele parece que foi feito pensando nisso do início ao fim, por ironia sendo lançado no mesmo ano em que tudo começou. Esse jogo não só nos ajuda a fazer as perguntas certas, mas também nos ajuda a respondê-las, sendo uma das obras de arte mais importantes para essa nova vida pós-covid. Mas antes, preciso explicar sobre o que o jogo é.

Construindo Pontes

Sam Porter Bridges caminhando perto de um penhasco

Vou precisar que você respire fundo para engolir um pouco de brisa fantástica, típica de todo jogo do Hideo Kojima. É só por um segundo, prometo. Vamos lá:

Por algum motivo, as almas dos mortos arranjaram um jeito de entrar em contato com o mundo dos vivos. Eles conseguem ser vistos por certos indivíduos com capacidades específicas, mas a população em geral não consegue os ver, apenas sentir. Eles conseguem interagir com o mundo material e tentam constantemente trazer os vivos para o mundo dos mortos. Não há comunicação e suas intenções são desconhecidas.

Há também uma peculiaridade: quando as almas aparecem, começa a chover – mas não é uma chuva normal. A água dessa chuva carrega uma espécie de propriedade temporal, que ao entrar em contato com superfícies acelera rapidamente seu processo de envelhecimento, podendo matar uma pessoa em segundos por deterioração ou enferrujar uma estrutura até ela ruir.

As pessoas, para se proteger, se confinaram em cidades subterrâneas e se comunicavam por tecnologia, até o momento em que as cidades perderam o contato uma com a outra. A humanidade sobreviveu a essa catástrofe paranormal; porém as sociedades estavam muito isoladas umas das outras e dependiam de entregadores humanos transportando cargas e materiais importantes para infraestrutura, similar a um correio. Eles deveriam enfrentar as chuvas, os mortos e também perigosos criminosos no caminho.

Sam se escondendo dos mortos

O jogador é um dentre vários entregadores, Sam Porter Bridges, sendo interpretado por Norman Reedus. Ele por um acaso é filho da última presidente dos EUA, que possui o sonho de reconectar o país e unir todos em prol do bem comum de nossa espécie. Além de suas necessárias tarefas de entregador, ela o encarrega de passar pelas cidades e as convencer a se unir para formar um país novamente.

Com esse enredo, já podemos observar vários paralelos com o mundo que estamos agora, especialmente no Brasil. Por que os vivos são atormentados pelos mortos? O que eles têm a dizer? O que esse fenômeno da chuva temporal simboliza? Qual a importância de ter um país unido e conectado em tempos de catástrofe? Ou melhor, será que é possível ter um país unido e conectado em uma catástrofe?

Pontes Brasileiras

Entregador de comida telefonando para o cliente

Como falei anteriormente, Death Stranding parece que foi feito pensando em fazer um jogo sobre a pandemia. O isolamento das cidades, o medo de sair e encontrar outras pessoas é uma convergência óbvia, mas o jogo vai além.

A covid-19 trouxe à tona uma conversa que não gostamos de ter, que é a morte. Não gostamos nem de pensar nesse assunto, a maioria com medo de achar algo que não vai gostar, já se sentindo angustiada, mas fomos forçados a nos confrontar com a realidade e olhar a morte de muito perto. Somado a isso, tivemos que lidar com o luto de pessoas queridas que se foram nesse período, mas diferente do usual, infelizmente foi um luto coletivo.

Este sentimento permeou por muito tempo nossas interações sociais (e em muitos lugares, permeia até hoje), sentimento representado com perfeição nos EUA devastados dentro daquele mundo. Afinal, nele os mortos literalmente voltaram ao mundo dos vivos para atacar os que ousam sair de seu isolamento, tentando puxá-los para o além-vida.

Também é importante observar como as divisões políticas que, dentro jogo se devem mais a questões geográficas, logísticas e fenômenos paranormais, acabam por representar tão bem as divisões dentro do debate político brasileiro. Ambas girando ao redor da mesma emoção, o medo; ambas repletas de traumas passados que retornam para assombrá-las no futuro.

A peça que faltava para fechar a angústia é a chuva temporal. A mortalidade só existe porque existe a temporalidade, esta emprestando seu caráter inevitável àquela. E quando nos isolamos, mesmo que para a nossa preservação e bem à vida, temos essa sensação do tempo passando rapidamente e escapando de nós, cada vez mais próximos de nosso destino final.

Você pode ver como jogar Death Stranding é se permitir vivenciar a experiência da pandemia, principalmente no Brasil. Se permitir identificar com os receios, medos, angústias das personagens e do mundo virtual. Porém, como mencionei na introdução, o mais interessante é notar como a jogabilidade ressalta todas essas temáticas e, ao mesmo tempo, espalha as ações do jogador de esperança e solidariedade, fornecendo uma sugestão de caminho para a humanidade.

Sam parado em uma pedra com uma pilha de carga em suas costas

Quarentena em Mundo Aberto

A base da jogabilidade é: uma cidade te dá uma encomenda (que pode fazer parte da progressão da história ou ser só um pedido comum) para outra cidade e você vai lá e entrega. Simples assim.

O problema nesse plano simples é o trajeto. Você passa por vários desníveis, terrenos inóspitos, penhascos, montanhas, neve, rios, vegetação, cavernas, praias, construções antigas... uma variedade absurda de ambientes, cada um com seus desafios próprios que exigem equipamentos ou construções específicas, tais como escadas, cordas, torres, pontes, estradas etc.

Sam escolhendo uma escada no menu

Além do terreno, a própria carga irá te atrapalhar. Sam precisa manter o equilíbrio para correr e se você distribuir suas cargas muito errado pelo seu corpo ou pegar muito volume, ficar de pé será complicado. Ainda por cima, Sam possui uma barra de energia. Carregar muito peso ou fazer manobras circenses para travessar irá cansá-lo mais rápido, o que dificultará a entrega.

Por último, você ainda tem que se preocupar com as condições de sua carga. Se você derrubar ela, se aventurar por água, neve, ou deixar ela exposta demais na chuva temporal, ela sofrerá danos, começando pelo recipiente e depois chegando na carga em si. Suas botas também se desgastam, então você precisa levar pares extras, ou machucará seus pés e começará a sangrar, o que leva a vários outros problemas mais complexos.

Você deve enfrentar tudo isso sozinho, passando pelo mundo sem sinal de vida além de inimigos hostis, uma missão solitária e árdua que o jogo faz questão de deixar muito difícil, a princípio só pelo desgosto mesmo, sem servir a um propósito.

Menu de distribuição de cargas

Cito tudo isso para haver a compreensão do tanto de gestão de recursos, preocupação e dificuldade você tem para se locomover de maneira rápida e segura. É aí que entra o brilho do jogo – quando você chega em uma cidade nova e os convence a se conectarem com os EUA novamente, tudo muda.

Instantaneamente, o mapa do entorno daquela cidade se “acende” com múltiplas estruturas, avisos, equipamentos, atalhos, estradas e placas que outros jogadores colocaram para ajudar uns aos outros. O que era uma experiência solitária de um jogador, se revela possuir um mundo compartilhado online.

Para deixar claro, você não tem como encontrar com outros jogadores ou interagir com eles diretamente, mas tudo o que você constrói é compartilhado. Isso mostra como a tarefa desnecessariamente árdua e difícil era intencional. Você precisava passar por tudo isso sozinho, para quando finalmente descobrir tudo que seus colegas andaram fazendo, valorizar como uma bênção.

Captura de tela mostrando Sam escaneando o ambiente e descobrindo vários pontos de interesse

É esse o propósito de Death Stranding. Ele deseja que você valorize mais o jogo coletivo, a comunidade criando, se ajudando e se desenvolvendo junta, do que o seu mérito próprio. E você, inconscientemente, muda seu jeito de jogar para a comunidade.

Por exemplo, ao passar de carro em uma estrada, você percebe como mesmo dentro de um veículo, a viagem pode demorar. E é possível colocar placas na estrada que dão um impulso de velocidade ao passar por elas. O detalhe: a placa não funciona para você mesmo, somente para os outros. E mesmo assim você sente vontade de colocar muitas delas. Uma das melhores emoções dentro do jogo é você construir uma estrada e, ao passar por lá no dia seguinte, ela está lotada de placas colocadas por outros jogadores.

Você também pode encontrar cargas no chão que outros jogadores acabaram deixando para trás, em alguma situação de combate que tiveram que fugir. Se você tem espaço, por que não levar para a cidade para que a carga seja devolvida ao dono? Dá pra encontrar estruturas incompletas cujo dono ficou sem recursos para finalizá-la no momento. Se você possui os recursos, por que não finalizá-la, mesmo que pertença a outra pessoa?

Kojima ainda foi inteligente de colocar ajudas passivas no jogo, isto é, você ajuda mesmo sem intenção. Por exemplo, se você caminha por um local, o seu trajeto fica salvo no mundo e outras pessoas podem ver e seguir o caminho que você escolheu. Se várias pessoas seguem seu caminho, a grama para de crescer e uma trilha se forma, se tornando mais fácil de caminhar por lá.

O que o jogo quer dizer com tudo isso é que, em momentos de catástrofe e tensão como esses, a sociedade precisa parar de pensar individualmente e começar a agir pelo coletivo. E você é ao mesmo tempo receptor, criador e participante ativo dessa mensagem enquanto joga, mesmo sem querer. Quanto mais você joga, mais força a mensagem tem e mais claros ficam seus benefícios. Por isso acredito que essa é uma obra importantíssima para o pós-pandemia.

O Fim

Há uma estratégia na psicoterapia que é ajudar as pessoas a fazer as perguntas certas. Às vezes as pessoas estão sentindo certas emoções, passando por certos processos ou se fixando em certos pensamentos sem saber como verbalizar isso e necessitam que o terapeuta as questione e as guie para que elas encontrem as respostas por elas mesmas.

Se você se recusa a cooperar com seus companheiros, por exemplo, se recusando a construir estruturas no jogo, quem você está realmente atrapalhando e atrasando? De que adianta nos isolarmos sem ajudar uns aos outros? Valeu a pena termos sido egoístas enquanto país, nos recusando a ajudar os outros, menosprezando a dor alheia, pensando somente nos nossos próprios interesses, em dinheiro, poder e influência? Quais foram as consequências disso? Aonde estão hoje os países que resolveram cuidar de sua população? Que resolveram cooperar não só internamente, mas com seus vizinhos?

São perguntas que o Brasil precisa fazer a si mesmo com séria ponderação até ano que vem. Nós temos a cooperação e sobriedade em nossa história, não há muito tempo éramos modelo de saúde no mundo em vários aspectos. Felizmente continuamos sendo na vacinação, mas talvez não por muito tempo.

Eu sei que, após ter essa experiência genial que Kojima trouxe, estou muito mais seguro do tipo de legado que desejo para nosso país. Não tenho recursos suficientes para construir essa ponte de uma vez, mas vou deixar minha parte com uma placa para outros ajudarem a completar.

OBS.: Ainda não terminei essa maravilha por falta de tempo e talvez faça mais artigos sobre esse jogo, porque há muito o que falar sobre ele sob outras lentes e tenho certeza que muitas outras coisas boas me aguardam até o final.

Por Rafael Marinho Normande

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Sam dando joia segurando BB no ombro