A Pós-Verdade na Arte

Há uma crença popular tanto entre leigos quanto na academia de que a arte é totalmente subjetiva e toda interpretação é válida. Será que isso faz sentido?

Cena de 2001: Uma Odisseia no Espaço

Há uns dias atrás, ouvi um episódio com o tema “Existe jeito errado de ver filmes e séries?” do podcast Cena Aberta. A ideia era comentar sobre as pessoas que querem mandar no gosto das outras, afirmando que se você não gostou de algo que elas gostaram por exemplo, você teria visto o filme errado.

Durante o episódio, o debate se desviou momentaneamente para um outro tema que me interessou bastante. Os apresentadores Max, PH e Mikannn ficaram se perguntando se existe uma interpretação correta de filmes, chegando à conclusão que não. O que existe é a sua interpretação subjetiva, pessoal da arte.

Eu discordo bastante disso. Inspirado pelo PH que solicitou a interação do público, defenderei com esse texto que, na maioria das vezes, os filmes possuem sim interpretações corretas e erradas. Sinto que esta é uma posição impopular, mas também explicarei o motivo dela ser relevante e como esse relativismo pode levar a caminhos muito perigosos se levado à risca.

Ressalvas

É importante ressaltar que o contexto do episódio era criticar a “patrulha do gosto”. Não tem nada mais irritante do que uma pessoa que tenta controlar o que você deve adorar e o que deve detestar, ninguém é obrigado a gostar de nada.

Esta é uma conversa diferente da que pretendo ter. Debater se uma interpretação está correta é diferente de debater se uma experiência está correta. É perfeitamente possível duas pessoas entenderem o filme por completo e saírem com impressões opostas, uma amando e outra odiando. Nem todo desgosto é fruto de mal entendido, as pessoas podem ter suas mais diversas razões para gostar de algo, incluindo nenhuma (como o PH tão apaixonadamente mostrou defendendo a pêra no episódio). Gosto não se discute, interpretação sim.

Outro ponto importante é que existem sim filmes que não possuem uma interpretação correta. Há filmes que propositalmente deixam algumas perguntas em aberto para serem interpretadas pelo público ou até mesmo seu próprio tema em aberto, por exemplo, 2001: Uma Odisseia no Espaço (1968). É mais complexo do que isso, mas no geral não há interpretação mais correta do que outra sobre ele. Não é sobre estes filmes que vou falar aqui, mas sim da esmagadora maioria das obras que são diretas sobre onde querem chegar.

Dito isso, vamos ao texto com a ajuda de J.R.R. Tolkien.

Intencionalidade

Foto de JRR Tolkien

No primeiro livro da trilogia, A Sociedade do Anel, Tolkien já no prefácio aborda os principais comentários sobre sua obra. Entre eles, a ideia de que seus livros seriam metáforas para temas relevantes da época, como a Segunda Guerra Mundial, a mitologia cristã e a política na Inglaterra.

Ele rejeita todas. Para Tolkien, seus livros não são metáfora de nada. Se um personagem toma certa atitude, pertence a certa classe social ou tem certa raça, nada tem a ver com a vida real, foi somente porque assim sentiu a necessidade para a história ficar melhor.

Ele aprofunda essa questão, diferenciando alegoria de aplicabilidade, conceitos cruciais para interpretarmos corretamente uma obra:

Podemos perceber duas conclusões lógicas aqui. A primeira é que a mensagem do autor importa. Não dá para interpretar uma coisa sem ter conhecimento da intenção do autor (a não ser que ele queira deixar uma obra aberta para discussões, mas novamente, é a minoria). Ele produz aquilo com um objetivo, um propósito, e ignorar isso seria o equivalente a ignorar a própria obra. Explico.

Arte é uma forma de comunicar ideias de maneiras criativas. Essas ideias podem ser conceitos, sentimentos, inspirações… se o interlocutor ignora a vontade do autor, essa comunicação é interrompida. Eu escreveria esse texto, você poderia ignorar tudo o que disse, criar algo novo e completamente diferente na sua mente e atribuir a mim, afirmando ser a sua visão do que escrevi.

Ora, temos a disciplina de interpretação textual nas escolas brasileiras por uma razão. Há maneiras corretas e erradas de se interpretar as coisas, porque caso contrário, a nossa comunicação não faria nenhum sentido. Qualquer frase e palavra poderia ser levada no sentido que o interlocutor quisesse e ninguém conseguiria conversar.

A segunda conclusão é a de que a obra torna-se maior que o autor. No momento em que ele a publica, o interlocutor consome e traz suas experiências, suas ideias e suas emoções, somando às do autor. Porém, é sempre importante lembrar que ocorre um processo de soma, não de substituição. É uma conversa, não uma imposição. Caso o interlocutor perca isso de vista, podem haver consequências sérias para sua vida e para a sociedade.

Ressignificando

Donald Trump em discurso

Em seu livro “A Morte da Verdade” (o qual farei muitas paráfrases neste trecho), Michiko Kakutani faz um belo resumo de como agiram as forças culturais que permitiram a ascensão de Donald Trump na presidência e o conceito de pós-verdade. Este termo remete à quando, no que tange à formação da opinião pessoal ou pública, os fatos acabam tendo menos peso em detrimento de emoções, paixões ou crenças individuais.

A raiz desta prática ganhou popularidade acadêmica nos EUA na década de 1960, quando o pós-modernismo começou a ser difundido através de autores como Jacques Derrida e Michel Foucault. O movimento, apesar de maneira involuntária ao meu ver, acabou dando base racional para a pós-verdade.

Em suma, o pós-modernismo prega que não existem verdades absolutas independentes da percepção humana. Seus defensores acreditam que o conhecimento é filtrado pelos prismas de classe, raça, gênero e outras variáveis. Ou seja, tudo é subjetivo e construído socialmente.

Eles acreditam que não há uma história objetiva e linear formada por fatos, apenas uma disputa de narrativas de diferentes grupos buscando por poder. Este raciocínio foi se difundindo por quase todas as áreas das ciências sociais, incluindo a arte, mas não pararam aí. Eles também acreditam que a própria ciência não passa de outro conjunto de narrativas que competem por aceitação, não tendo uma relação inquestionável com a realidade. Argumentam que a ciência é influenciada pela identidade da pessoa que postula a teoria e pelos valores de sua cultura, portanto não pode alegar neutralidade.

Foto de Jacques Derrida Jacques Derrida (1930-2004)

Derrida em especial enfatizou a instabilidade da linguagem, afirmando que os textos são instáveis, ou seja, mudam de sentido ao longo do tempo com significados atribuídos pelos leitores. Assumindo que isso fosse não só verdade, como desejável e até inevitável, ele chegou na mesma conclusão elementar que cheguei no trecho anterior: qualquer coisa pode significar qualquer coisa. A intenção do autor sequer pode ser descoberta objetivamente, não há obviedade ou senso comum, somente um poço de complexidade. Ele chama sua análise textual de “desconstrução”.

Quero dar uma pausa aqui para enfatizar que pós-modernismo é diferente de multiculturalismo, porque creio que muitas pessoas podem entender errado o que estou dizendo. Este preza pelo pluralismo e diversidade, defende que se derrubem as barreiras que impedem vozes frequentemente marginalizadas na historiografia ou na ciência de serem inclusas e consideradas. Já aquele pratica uma versão reducionista de que todo conhecimento é simplesmente uma construção ideológica de algum grupo, transformando-o em uma série de mitos.

E esta que é a diferença fundamental que o pós-modernismo traz. Você pode estar se perguntando “ué, mas parcialidade de fato sempre existiu na construção de conhecimento, o que de fato mudou?” e a resposta é justamente o abandono da ideia de que é possível ser imparcial, ser objetivo ou sequer chegar a uma verdade.

Antes, as pessoas podiam florear certos detalhes sem perceber ou mesmo mentir deliberadamente. Debates sobre o que era verdadeiro existiam, mas em todos eles havia a crença comum de que fatos existem e podem ser alcançados. Quando essa crença é abandonada, quando as pessoas param de buscar serem verdadeiras e abraçam a parcialidade, abre-se o caminho para que um líder ou um grupo dominante decida o que as pessoas devem acreditar.

Dominância

Jair Bolsonaro em sua tradicional live de quinta com uma criança fazendo expressão de desgosto ao seu lado

É interessante perceber que o pós-modernismo enquanto corrente filosófica sempre foi associada à esquerda, sendo utilizada em vários campos por acadêmicos de esquerda e inclusive recebendo críticas por isso, mas no que tange à campanha e forma de fazer política, foi a direita que transformou em seu modus operanti.

Mentiras não são novidade na vida pública. Desde que seres humanos se relacionam entre si para formar sociedades, há disputa desonesta por poder. O que é novidade é a diferença fundamental que mencionei: a desobrigação de buscar a verdade. Pouco importam fatos, o que sinto é o suficiente para nortear minhas crenças.

Isso ocorreu em todos os governos totalitários do século XX e é por isso que a ascensão do novo populismo de direita no mundo causa tanto temor nos especialistas. Com as redes sociais, manipular pessoas a adotar a pós-verdade nunca foi tão fácil. Desde que a Cambridge Analytica mostrou isso na votação do Brexit, Steve Bannon adotou essa estratégia na campanha de Trump e, posteriormente, na de Bolsonaro aqui no Brasil.

O desprezo pela verdade apareceu sem nenhum pudor nas diversas ocasiões de revisionismo histórico que esses políticos promovem, além do negacionismo científico (tanto na pandemia de covid-19, quanto nas mudanças climáticas), agressões à atividade jornalística e a profissionais de inúmeras áreas que tentavam defender mais do que uma verdade que vai de encontro aos seus objetivos, mas a mera existência de uma verdade.

Caso a hipótese de que não há interpretação correta para a arte fosse verdadeira, teríamos que considerar o revisionismo do governo Bolsonaro afirmando que o cometa de “Não Olhe Para Cima” era o PT como uma interpretação tão válida como qualquer outra, mesmo seu realizador tendo deixado muito claro quem ele pretendia atingir.

Desfecho

Cena final de Clube da Luta, com o protagonista e sua namorada observando a destruição dos prédios

Antes de encerrar esse texto, queria deixar claro que não quis corrigir os apresentadores do Cena Aberta, até porque este nem era o tema do episódio, apenas uma conversa paralela rápida que me inspirou a escrever esse texto. Usando as definições apresentadas previamente aqui para explicar: eu utilizei o podcast como base para fazer várias associações livres longe das intenções iniciais dos autores!

Inclusive, quando tocaram neste tópico, Mikannn explicou de maneira sucinta e didática o conceito de sustentação em tela (mesmo sem usar este termo específico), que é basicamente a necessidade de haver algum elemento mostrado durante o filme respaldando a sua interpretação para ela ser válida.

Parafraseei muito o livro de Michiko Kakutani, mas devo também dar o devido crédito a George Orwell, escritor de diversos ensaios sobre o pós-modernismo e a pós-verdade (também sem usar este termo específico), que a própria Kakutani cita bastante para embasar seu livro. Deixo aqui a recomendação de sua obra prima, 1984.

Por fim, gostaria de terminar este texto com uma atiçamento. Max chegou a comentar que muitas vezes o crítico é visto como uma figura boçal a ser cultuada, que vai descer de seu pedestal e apresentar o que as pessoas devem achar de um filme mesmo que seja contra as suas experiências. Ou seja, um líder dominante que tem o poder de controlar o que é a verdade, assim como vimos na política.

Ele conclui que essa fama injusta vem das pessoas que querem mandar no gosto das outras, as que dizem que você “assistiu errado”. Mas será que ela não é, na verdade, um fruto do relativismo na arte, que permite a crença de que não existe resposta correta e a ascensão de líderes ditando o sentimento das pessoas?

Por Rafael Marinho Normande

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