As Falsas Promessas das Artes Marciais

Artes marciais são um grupo de atividades que ensinam você a se defender de agressões físicas. Mas será que ensinam mesmo?

Dois lutadores de Karate Shotokan na prática de kumite

Excluindo breves períodos que fiquei sem praticar, tenho no mínimo 15 anos dedicados às artes marciais. Tive aulas experimentais e pequenas situações em que pratiquei outras, mas é seguro dizer que todo esse tempo foi dentro do Karatedo Shotokan, conhecendo um número razoável de dojos. Além disso, sempre tive amigos que praticavam outros estilos, outras artes e sempre trocávamos experiências, treinando junto com eles vez ou outra.

Já participei de competições estaduais e também de organizações de torneios. Também já lutei com campeões brasileiros e karatecas relevantes no cenário nacional. Acompanhava e assistia campeonatos mundiais, estudava suas posturas e golpes. Tenho uma coleção (incompleta, erro que corrigirei em breve) de livros feita por um dos discípulos diretos de Gichin Funakoshi (criador do karate), sendo ele Masatoshi Nakayama, responsável pela divulgação da arte marcial pelo mundo, descrevendo com detalhes as maneiras corretas de se treinar e lutar karate.

A maioria das pessoas classificaria esse histórico como o de uma pessoa que sabe se defender em situações de perigo. No entanto, praticamente nada do que falei até aqui tem a ver com defesa pessoal.

Frequentemente colocados como sinônimos, os conceitos de “artes marciais”, “luta” e “defesa pessoal” são três coisas muito diferentes, apesar de possuírem alguns poucos pontos em comum. Ao longo da minha vida, fui aprendendo essas diferenças importantes e percebendo como tão poucas pessoas, mesmo as que praticam artes marciais, conseguem apontá-las.

Meu intuito com esse texto é explicar de uma maneira ampla quais são essas diferenças e o que realmente estão te oferecendo, ajudando você a escolher de maneira mais sábia como usar seu tempo, dinheiro e esforço. Ter essa compreensão também pode salvar a sua vida.

Artes Marciais

Um dojo fazendo a prática de kihon

Esta é uma cena comum em um dojo de karate. Conhecido como kihon, trata-se do treino de técnicas em oponentes imaginários. Seu objetivo é construir a forma correta do golpe antes da aplicação em combate, meta final de todas as práticas do karate. Ele é um dos três pilares da arte, junto com o kata (uma espécie de coreografia elaborada por Funakoshi utilizando os movimentos do kihon) e o kumite (luta de fato, seguindo as regras do esporte). Artes como Kung Fu, Tae Kwon Do e muitas outras possuem estruturas similares de treino.

Também é possível praticar com um parceiro colaborativo, que vai atacar de maneira pré-definida para que você possa reagir com a técnica correta. Por ser colaborativo, não há resistência ou força real, você apenas golpeia uma vez e aguarda seu parceiro reagir e aplicar a técnica dele. Muitas vezes, quando a técnica é classificada como perigosa, ela é inclusive feita de forma lentificada, para não machucar.

Esta preocupação com ferimento permeia o mundo das artes marciais e é atrativa no geral. Você não treina simulando uma agressão real com contato total (full contact). Evidente que isso traz suas desvantagens; diversas vezes, em diversos contextos, no karate e também em outras artes, vi sendo ensinadas técnicas super complicadas e elaboradas que só deveriam ser utilizadas “nas ruas”, em “situações de defesa pessoal”, argumentando que eram golpes “mortais demais” ou “fortes demais” para serem aplicados no dojo, sem real comprovação dessa eficácia.

Já que o desenvolvimento moral do indivíduo é algo muito importante nas artes marciais, incentivando valores como disciplina e respeito, de uma maneira geral se você pedir por mais resistência ou força nas práticas, corre o risco de ser visto como um irresponsável por seus pares. Como assim você quer testar esta sequência que culmina na remoção dos olhos do oponente com força total? Você está louco?

Esse tipo de pedido é algo que não passa pela cabeça da maioria dos praticantes. Nós buscamos ao máximo não causar dor ao colega. Ser capaz de desferir um golpe potente com total destreza física e controle para que não atinja seu adversário se assim desejar é motivo de orgulho. Esse ar de nobreza e beleza se reflete em uma parcela boa do público, que rejeita esportes de luta full contact por serem violentos demais.

Este pensamento pôde ser visto nas Olimpíadas de Tokyo 2020, quando um karateca foi desclassificado por acertar um chute no rosto do oponente na disputa pelo ouro e nocauteá-lo. No kumite se ganha uma luta com pontos e, para marcá-los, basta parar a poucos centímetros da pele do adversário, ou tocá-la levemente, como se avisando “se eu quisesse, poderia ter golpeado você feio”. O golpe do iraniano foi considerado excessivo porque ele de fato completou o chute e nocauteou seu adversário, o que teria demonstrado:

  1. Falta de disciplina e controle: Pois qualquer karateca de alto nível, ainda mais os que chegam em finais de Olimpíadas, tem a capacidade de parar o chute na distância que quiser. Os juízes então concluem que, se ele completou o golpe, é porque foi intencional;
  2. Falta de respeito: Uma vez que o chute foi intencional, significa que ele queria machucar seu oponente. E como mencionei antes, isso é visto como uma falta de respeito com seu colega competidor.

Dentro das artes marciais, por haver essa preocupação com os fundamentos morais dos praticantes, situações como essa são muito comuns. É uma abordagem muito diferente do mundo das lutas.

Lutas

Lutador Charles do Bronx finalizando seu oponente no octógono

Quando falo “lutas”, quero me referir a toda atividade cujo objetivo é ganhar do seu oponente em um combate desarmado com resistência total, full contact. É onde estão a maioria das competições e esportes envolvendo combates. Faço esse esclarecimento primeiro por não ter um termo melhor para traduzir do inglês “fighting”, segundo que, apesar de valores morais como disciplina e respeito fazerem parte de todos os esportes, essas atividades não possuem um foco em nutri-los como nas artes marciais.

Não há preocupação com seu desenvolvimento moral além do normal para um atleta, o objetivo é simplesmente ganhar do seu oponente em um combate corpo a corpo. Isso gera uma mudança grande de hábitos e significados, transformando um ambiente que ensina a lutar muito distinto de um que ensina artes marciais.

A dor não é temida – ela é abraçada. O treino é intenso e usa golpes reais (chamado popularmente de sparring, termo que vem do boxe). Todos lá entendem a importância de não se abalar após levar um soco porque você não pode se desesperar. Cedo ou tarde ele chega e você precisa saber tomá-lo e continuar de pé, focado. Logo, o oposto das artes marciais acontece: nocautes são vistos como vitórias celebradas e esquisito é não treinar com resistência total, afinal seu parceiro não melhora suas técnicas sem você resistir.

Falando sobre isso, acredito que seja ululante que, quando se trata de ganhar uma luta, quem treina lutando tem uma vantagem significativa contra quem treina sem resistência do seu parceiro. Você só fica bom no que você pratica; se deseja ficar bom em luta, tem que praticar lutando. Caso contrário, você não tem como saber se sua técnica é efetiva em um combate real; pode ser que ela só funcione em cenários imaginados e muito específicos, sendo poderosa somente quando seu parceiro colabora. É por isso que vemos poucos praticantes de artes marciais tradicionais tendo sucesso em competições de MMA (Mixed Martial Arts), a maioria esmagadora de nós não faz sparring.

Porém, por mais que lutar seja o mais próximo possível de um combate real, ainda é bem distinto de defesa pessoal. Se aquele consegue fazer a diferença entre a vitória e a derrota, este é a diferença entre a vida e a morte.

Defesa Pessoal

Imagem de um agressor com uma faca se preparando para abordar uma mulher

Na luta, o objetivo é ganhar do seu oponente. Na defesa pessoal, seu objetivo é não perder. Essa pequena mudança pode parecer que está dizendo a mesma coisa, mas na verdade é um raciocínio oposto.

Você pouco se importa em imobilizar, nocautear ou finalizar seu adversário sob qualquer forma. A sua preocupação é garantir sua integridade física e sua vida. Por isso que, generalizando, luta não é defesa pessoal. O ato de lutar coloca em risco justamente o que você busca proteger. Não significa que saber lutar é inútil (mais sobre isso daqui a pouco), só que está longe na lista de prioridades de alguém que quer se defender.

Se você quer aprender a se defender de verdade, mais vale desenvolver habilidades que te ajudam a evitar ou fugir de conflitos físicos, tais como:

E muitos outros inúmeros pontos que poderiam ser abordados antes de entrar no evento de uma luta. Uma pessoa pode ser excelente em defesa pessoal sem nunca ter dado um soco na vida. Novamente, o objetivo é não perder – a prioridade é evitar situações em que perda é uma possibilidade.

Mas e quando você não tem escolha se não lutar? Apesar de raro, pode acontecer. Aí que entra a importância de saber onde cada área tem seu valor.

Síntese

Diagrama de Venn com 3 círculos

Podemos resumir o raciocínio em um diagrama como este. Cada círculo representa uma das 3 áreas, por exemplo: artes marciais são o verde, lutas o vermelho e defesa pessoal o azul.

Importante perceber que eles possuem intersecções. Existem coisas em comum entre duas áreas e entre todos eles. Falei anteriormente sobre lutar não ser inútil em defesa pessoal e esta é a razão, existem habilidades que são comuns às duas práticas, mas utilizadas com metas distintas – uma ganhar, a outra não perder.

Outro detalhe importante é como as diferentes artes marciais se posicionam neste círculo verde. Algumas estão mais próximas do círculo vermelho e possuem muito em comum com lutas, como jiu-jitsu. Outras, como o karate, estão um pouco mais longe e isso não é um demérito. Existem pessoas que veem essas considerações de maneira negativa, como se estivesse diminuindo uma arte (até mesmo por conta do título chamativo que coloquei), mas não procede. Acredito que temos que encarar a realidade como ela é, o intuito é desmistificar crenças populares e encontrar valor nas coisas relevantes que são oferecidas.

Pessoalmente, posso citar que o karate teve muito valor na minha vida e ainda tem. Além de ser ativo no meu desenvolvimento físico, também me deu muitas lições. A minha favorita foi conviver com inclusão, mais do que qualquer ambiente que já estive. Treina-se junto com homens, mulheres, crianças, idosos, pessoas com deficiência intelectual, pessoas com deficiências físicas... há um sentimento gostoso de acolhimento.

Dois karatecas treinando, um deles portador de nanismo

E claro que há diferenças regionais. Treinar karate em Iturama-MG é diferente de treinar em Okinawa (cidade berço, no Japão), que por sua vez é diferente de treinar em Lomita (na Califórnia, localização do dojo de Lyoto Machida). As posições do karate nessas 3 cidades encontram-se em pontos diferentes do círculo verde.

Assim, você precisa primeiro refletir sobre o que está buscando (arte marcial, luta ou defesa pessoal) e depois procurar um espaço que ensine aquilo, sem perder seu tempo. Caso contrário, há o risco de se ter algo muito pior que o medo: a falsa sensação de segurança.

Espero que seja uma busca mais fácil depois desse texto.

Oss!

OBS.: Para eventuais karatecas que leiam este texto, estou ciente que há diferenças entre o karate esporte e a arte marcial, assim como as várias formas de kumite (jyu, shiai, yakusoku, etc) além da que descrevi no texto (kihon kumite). Meu objetivo foi falar das práticas mais utilizadas nos dojos atualmente, que são voltadas para o esporte. Um karateca brasileiro médio não terá contato com a maioria desses métodos de treino.

Por Rafael Marinho Normande

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