As Quatro Origens de Tudo (em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo)

Este ano fomos presenteados com um dos filmes mais criativos dos últimos anos. Com a ajuda dele, podemos ter uma conversa séria sobre nossa existência e o sentido da vida.

Este texto contém spoilers.

Evelyn protegendo sua família colocando-se na frente

Tudo Em Todo Lugar Ao Mesmo Tempo (2022), dirigido pelos Daniels (Daniel Kwan e Daniel Scheinert) estourou em um sucesso de público e crítica mesmo sem ter um grande orçamento ou fazer parte de uma franquia, algo raro hoje em dia. O filme é conhecido pela complexidade de sua linguagem e, mesmo tendo um enredo simples, seu roteiro também é bem complexo.

Ele tem que lidar não só com a estrutura difícil de se realizar do enredo, mas também com inúmeros temas que se propõe a discutir. Comentarei mais sobre os outros temas e como eles surgem tanto explicitamente quanto no subtexto, mas o que pretendo focar hoje é a questão que move o filme: o sentido da vida.

Cegos pelo Cientificismo

Morty conversando com sua irmã Summer

É dito no filme que quanto mais descobertas científicas acontecem, menores nos sentimos, mais sem sentido a vida parece, menos importância parecemos ter. Cada vez que entendemos e dominamos mais o universo, menos diferente nos sentimos de um animal qualquer, ou até mesmo uma vida qualquer. Você talvez se identifique com esse sentimento; eu também me sentia assim há alguns anos.

Ao se tornarem entidades que coexistem com várias versões de si mesmas pelo multiverso, tanto Jobu Tupaki quanto Evelyn são tomadas por um niilismo irrefreável. Afinal, se existem infinitos universos que elas existem e outra infinidade na qual não existem, de que importa o que elas fazem ou deixam de fazer?

Esse estado de irrelevância parece permanente e inevitável com o avanço do conhecimento, mas não é assim que funciona. Na verdade, ele parte de uma ideologia. Uma ideologia que muitos aderem sem se dar conta e nem percebem que são militantes; uma ideologia que traz consigo várias contradições, responsáveis por essa aflição existencial: o cientificismo.

Nomeei este trecho em referência ao texto homônimo de um filósofo contemporâneo chamado Edward Feser. Lá ele expõe os principais fundamentos do cientificismo e o porquê de estarem errados. É o que vou resumir para você agora.

Cientificismo é a crença de que ciência é sinônima de razão (aqui uso ciência como o método científico e suas aplicações). Todos nós entendemos e aceitamos que a ciência faz parte da razão, mas quem é adepto desta ideologia (e volto a lembrar: a maioria nem se dá conta de que está nesse meio) acredita que ela é a única forma de se chegar a uma verdade.

Isso não procede. Há diversas formas de se chegar a verdades universais sem utilizar a ciência e isso era extremamente comum na Antiguidade e Idade Média. A matemática é um bom exemplo. Para chegar na verdade universal que é seu teorema geométrico, Pitágoras por um acaso fez um ensaio clínico randomizado com grupo de controle entre triângulos retângulos e não-retângulos ou ele fez uma demonstração racional e lógica provando uma verdade inevitável?

Pintura de Isaac Newton em seus aposentos Isaac Newton desenvolveu o cálculo para poder continuar seus estudos científicos, o que gerou uma série de verdades matemáticas universais descobertas. Fez isso antes dos 25 anos enquanto estava de quarentena devido a uma pandemia. Só tristeza quando lembro da minha vez de quarentena...

Trago essa questão para afirmar que existem verdades que a ciência nunca irá descobrir, porque ela não foi feita para isso. Ciência é um método de investigação do mundo material, qualquer coisa que esteja no campo imaterial (como a matemática), não conseguirá interagir com ela. Seria como tentar medir seu peso usando uma régua, é o instrumento errado.

Ou seja, temos que ter um outro sinônimo para o exercício da racionalidade, a filosofia. É ela quem dá sustento racional para o método científico com verdades que a ciência nunca poderá concluir, tais como: a existência de um mundo externo à mente dos cientistas; mundo este governado por nexos causais gerando consequências previsíveis; outros cientistas possuem outras mentes e podem se comunicar de maneira eficiente; podemos obter informações confiáveis a partir de nossos sentidos, etc. Ora, a própria afirmação de que a ciência é o melhor método de investigação do mundo material não é uma afirmação científica, apesar de ser racional.

Uma vez que temos a compreensão de que questões como o sentido da vida não serão respondidas com estudos científicos, é a hora de nos perguntar: o que a filosofia tem a dizer sobre isso?

As Quatro Causas

Estátua de mármore de Aristóteles

Antes de tudo, é necessário entendermos que quando perguntamos o sentido de algo, estamos perguntando a razão desse algo existir. É inequivocadamente um questionamento sobre a origem das coisas. E como a vida surgiu?

Aristóteles já postulou que todas as coisas possuem uma origem. Não apenas uma, mas quatro causas diferentes. Pode parecer estranho, mas ao ler você verá que são completamente intuitivas. Vamos lá:

Tomemos como exemplo uma bola de futebol. Suponhamos que você nunca viu uma na vida e quisesse descobrir o que é essa coisa. Bom, um exame apressado lhe revelaria que ela é sólida, esférica, feita de borracha e couro e é saltitante. Mas isso não lhe daria uma explicação completa sobre o que é este objeto, concorda? Examinando com mais cuidado, se perguntando de onde veio isso, você lê “Penalty, Made In Brazil”, o que te traz a conclusão lógica que foi feita em uma fábrica, não sendo um objeto encontrado na natureza. Por último, resta a questão mais importante: pra que serve? A resposta evidentemente é que a bola foi feita para o jogo de futebol ser jogado, buscando entretenimento.

Essas foram as quatro causas comuns a todos os fenômenos segundo Aristóteles. Separando mais precisamente:

  1. Causa material: De que matéria é feita a coisa. No caso da bola é borracha e couro.
  2. Causa formal: Qual a forma que a matéria assume. Aqui entram características como redondeza, solidez, esfericidade, elasticidade.
  3. Causa eficiente: O que fez essa coisa ser o que é, o que transformou sua matéria e forma para ganharem seus estados atuais. Neste caso, seriam as ações dos trabalhadores da fábrica.
  4. Causa final: O fim, objetivo, propósito de algo. Aqui sendo o entretenimento.

Percebamos duas conclusões lógicas: a primeira é que há como fazer questionamentos adicionais como “por que decidiram montar esta fábrica?” e similares, mas eles só levariam às quatro causas deles e assim por diante; e a segunda, como dito anteriormente, todo o mundo natural está sujeito a ter estas quatro causas, não somente artefatos feitos pelo homem.

Vamos ver um outro exemplo para comprovar isso: o coração humano. Precisamos entender primeiro de que ele é feito, sua causa material, que a grosso modo seriam de tecidos musculares e nervosos. Porém estes tecidos também formam outras estruturas que não são corações; então precisamos também da causa formal, que seria essa matéria ganhando a forma de átrios, ventrículos, nós cardíacos e fibras nervosas. Em seguida há a causa eficiente, isto é, a embriologia cardíaca, iniciando desde a fecundação até a separação em folhetos e os processos necessários para o coração ganhar a forma de coração. Por fim, a causa mais importante de todas, que norteia todas as outras, a causa final – sua função é bombear o sangue para o corpo.

Resumo das quatro causas em um diagrama

Nós conseguimos responder o sentido da vida de plantas e dos animais. Sabemos sua causa material e formal, que são bem óbvias assim como as dos exemplos que dei acima, sabemos sua causa eficiente, que é sua embriologia, e também sua causa final, que é sobreviver e reproduzir. Mas e o ser humano?

Nós não somos como os outros seres vivos. Temos características essenciais que nos diferem deles, sendo as principais justamente nossa capacidade racional e de livre-arbítrio. Apesar da causa material ser semelhante, nossa causa formal é muito diferente: somos animais racionais. Nossa causa eficiente é nossa própria embriologia também, mas e a causa final?

A tentação ao primeiro momento é de dar a mesma resposta dos outros animais – sobreviver e reproduzir. Entretanto, temos que lembrar das diferenças das causas formais mencionadas. Foi evoluindo com as plantas que surgiu a capacidade de absorção de nutrientes, algo que todos compartilhamos com elas. Depois, com os animais surgiu a capacidade de percepção através dos sentidos e locomoção, o que nós como seres humanos também compartilhamos.

Notem que a racionalidade e o livre-arbítrio não entram nestas semelhanças. Colocando em uma hierarquia, nós temos a causa formal mais elaborada, porque possuímos todas as anteriores mais outras características exclusivas. E como vimos anteriormente, a finalidade é a mais importante de todas, porque ela guia tudo a uma direção específica. Não faz sentido ter uma causa formal tão diferente se a final for a mesma.

Qual é nosso propósito?

A Moralidade

Evelyn com o olho mágico em sua testa no terceiro ato do filme

O fato de uma coisa ter certa forma anda de mãos dadas com o fato de ela ter certa causa final. As plantas são direcionadas à absorção de nutrientes, crescimento e reprodução, esses são os fins que a natureza as deu. Os animais também têm esses fins naturais, com o acréscimo de outros permitidos pela capacidade de locomoção e percepção. Os seres humanos possuem as finalidades dos animais e das plantas, mas no topo de tudo há as causas finais que ser racional e ter livre-arbítrio implicam.

A racionalidade, ou seja, a capacidade de aprender formas e raciocinar com base nelas, tem como finalidade a aquisição de conhecimento, compreensão de mundo, a descoberta da verdade. O livre-arbítrio por sua vez tem como fim natural escolher as melhores ações em conformidade com as verdades descobertas pela razão. Em suma, temos a capacidade de distinguir o certo do errado e escolher não agir da forma errada, diferente dos outros seres vivos.

Ora, o que é isso se não a moralidade? Para Aristóteles e também para o filme, a causa final do ser humano é exercitar a razão e agir de acordo com a moral. Evelyn passa por vários arcos diferentes durante o filme, mas o principal é encontrar o sentido da vida humana, a sua causa final.

Quando Jobu Tupaki mostra a ela toda a infinitude do multiverso, trazendo revelações científicas para a qual não está preparada, Evelyn reage como Jobu também reagiu no passado – parando de se importar com o que é certo ou errado, afinal há infinitas versões de infinitas Evelyns. Qual o problema de fazer coisas erradas em um punhado deles?

Jobu em particular, por estar nesse estado há mais tempo, é descrita explicitamente como um ser desprovido de moral ou remorso, ou seja, ambas perderam sua causa final de vista devido ao cientificismo. Evelyn ainda tem outros agravantes pessoais, pois sua vida já não tinha tanto sentido antes de sua jornada, repleta de frustrações em sua caracterização por potenciais não realizados. Por isso, ela facilmente decai nesta perversão, assim como os lacaios de Jobu com suas vidas irrelevantes aos olhos deles.

Waymond lutando

É somente quando seu marido Waymond implora no final para que todos parem de lutar e sejam bons uns com os outros que ela compreende finalmente o que é importante – a causa final. Ela que tanto criticava ele por ser atrapalhado e tolo, vivencia e lembra de vários momentos que a bondade dele os ajudou, trouxe felicidade, a formação de sua família, cuidado e carinho com parentes, amigos e clientes, o exercício contagiante do perdão e da compaixão...

Evelyn para de brigar e, em suas palavras para Waymond, afirma: estou aprendendo a lutar como você!, ou seja, está agora lutando pela moralidade de seus oponentes. Ela visita várias versões deles no multiverso, os ajudando, os perdoando, os incentivando a se esforçar e serem melhores, brigando contra injustiças... até mesmo os amando. Só assim consegue tirá-los da devoção à corrupção moral que estavam, subir as escadas e fazer o mesmo com Jobu, que apesar da pose vilanesca, revela que só está muito confusa em relação à sua existência e seus relacionamentos com as pessoas.

A jornada de Evelyn rumo à descoberta da moralidade não só é extremamente tocante, como também necessária para a maturidade.

Ao Mesmo Tempo

Família Wang reunida em atendimento na Receita Federal dos EUA

Este é o tipo de filme que mais me encanta. Caso você queira apenas acompanhar o enredo sem compromisso, você pode. Caso se permita, vai descobrir detalhes cada vez mais cuidadosos e elaborados. É uma obra complexa, mas nunca complicada.

Engraçado que o próprio filme parece ser um exercício de empatia, semelhante à mensagem final. Há histórias paralelas, conflitos que pipocam simultaneamente e desaparecem rapidamente no meio de cenas de ação, como Evelyn lidando com a homossexualidade de Joy, suas frustrações pessoais, o divórcio, suas memórias tristes de sua vida... tudo surge e desaparece quase no mesmo segundo, mas graças à nossa capacidade natural de empatia, é o suficiente para conseguirmos nos envolver emocionalmente e trocar de uma subtrama para outra.

Outro ponto interessante é que a forma como o filme decide contar sua história é abusando de uma função psíquica muito importante nossa: a atenção. A atenção é dividida em dois aspectos, que são a tenacidade (capacidade de focar a atenção em único objeto) e a vigilância (capacidade de trocar a atenção entre objetos). Claramente o filme pede que alternemos bastante entre essas duas habilidades, exigência esta que também coloca sobre a protagonista. Fico maravilhado quando a linguagem audiovisual do filme faz sentido temático e imersivo, com a experiência do espectador refletindo acuradamente o que ocorre sincronicamente no roteiro.

Falando de atenção, é a partir dela que podemos fazer várias metáforas e comparações com a vida atual trazendo perspectivas refrescantes sobre o filme, desde as relações do mundo na era digital com o multitasking até pessoas que convivem com TDAH. Quem nunca conversou com a mesma pessoa sobre três assuntos diferentes em três aplicativos diferentes concomitantemente?

Evelyn partida entre dois universos

Tem muito mais o que analisar e entender sobre o filme, mas por hora, isso é tudo o que queria abordar. Caso queira se aprofundar no trabalho de Edward Feser (que parafraseei muito nesse texto), recomendo primeiro ler seu artigo que linquei quando falava de cientificismo (vou ser bonzinho e lincar mais uma vez aqui). Se quiser se aprofundar ainda mais, aí recomendo o livro A Última Superstição. É um trabalho extenso, porém didático de divulgação filosófica com conclusões impactantes.

Por Rafael Marinho Normande

#cinema #filosofia #moral