Choque de Realidade

Com a pandemia, discussões sobre liberdade individual tornaram-se mais comuns. Há pessoas que afirmam que a liberdade deve tender a níveis quase irrestritos, tendo como limite apenas a liberdade de outro ser humano.

Quem diria que a refutação mais plena e absoluta para esse raciocínio viria de um jogo desconhecido em 2007 chamado Bioshock?

Capa da coleção da franquia

Este é meu jogo favorito de todos os tempos por uma boa razão. Bioshock não só foi pioneiro ao transitar entre diferentes gêneros. Ele fez isso trazendo uma reflexão política inédita na indústria através da sua jogabilidade, construção de mundo e enredo.

Desde a primeira cinemática até a última e passando por toda a sua campanha, Bioshock está constantemente trazendo uma mensagem que, com a ascensão da extrema direita no mundo, está cada vez mais atual – a crítica ao objetivismo.

Essa mensagem é importante pois, ao meu ver, marca uma importante passagem da maturidade política. É o momento em que percebemos que não é realmente possível viver fora da sociedade, que limites para suas vontades são necessários e que não importa o quanto fujamos dele, sempre haverá concentração de poder em uma estrutura similar ao Estado.

Quando essa maturação não ocorre, nós temos como resultado os movimentos antivacina, negacionista das mudanças climáticas e o anarcocapitalista como exemplos, além do mais recente debate no Brasil, no qual um apresentador de podcast fez uma defesa ampla da liberdade de expressão ao ponto de permitir a ascensão do neonazismo. Estes movimentos sonham com um mundo em que podem realizar tudo que lhe é quisto sem o racional de sua volição, despropositadamente pedindo a sua própria ruína.

Com esse texto, pretendo utilizar o jogo para mostrar os perigos dessa linha de pensamento, abordando o trabalho de alguns filósofos. Particularmente, ele explica este assunto de uma forma muito didática – atendendo ao pedido de seus seguidores.

O Fardo do Homem Rico

Andrew Ryan

Tudo começa com este homem. Andrei Rianovski era um homem de classe média e vivia bem na Rússia, até que a revolução de 1917 se instalou e a União Soviética surgiu, trazendo muitos conflitos externos e internos para sua população. Horrorizado com a experiência de sua vida, Andrei tornou-se oposto voraz do comunismo e fugiu para os EUA. Lá ele alterou seu nome para Andrew Ryan e criou um império industrial, transformando-se em um dos magnatas mais ricos do mundo.

Andrew então, após viver um tempo em tranquilidade, viu-se novamente ameaçado com o surgimento de sindicatos e o New Deal, além da pressão que a Igreja Católica e outras poderosas instituições religiosas faziam para, em sua concepção, retirar o que era seu direito: ter o lucro de seu trabalho para fazer o que bem entender. Foi aí que ele teve uma ideia.

Ele iria construir uma cidade. Longe de qualquer civilização conhecida, esta cidade não teria governo, religião ou nenhuma outra forma de poder além de capital puro para que você fizesse o que bem entendesse.

Não havia leis; contanto que fossem dois adultos consentindo por suas vontades em um acordo, outras pessoas não poderiam questionar. Seria a terra da liberdade plena, coisa que ele deixava claro na entrada da cidade.

No Gods or Kings. Only Man.

Esta entrada ficava dentro de um farol no meio do oceano atlântico, com um elevador para o fundo do mar – era uma cidade submarina. Nas palavras de Andrew: “não era impossível construir a cidade nas profundezas do oceano – impossível era construí-la em qualquer outro lugar”, fazendo referência à pressão que o mundo colocaria nesta sociedade se soubesse de sua existência.

Somente os mais brilhantes artistas, cientistas, pensadores e empresários recebiam o convite para participar desta sociedade, escolhidos a dedo pelo próprio Ryan para que sua cidade fosse ocupada pelas mentes mais notáveis da época. Muitos recusaram, muitos outros aceitaram.

Oi, meu nome é Andrew Ryan e eu estou aqui para lhe fazer uma pergunta. Não seria um homem dono do suor sobre sua testa?

NÃO!, diz o homem em Washington. Ele pertence aos pobres. NÃO!, diz o homem no Vaticano. Ele pertence a Deus. NÃO!, diz o homem em Moscow. Ele pertence a todos.

Eu rejeitei estas respostas. Ao invés disso, escolhi algo diferente. Eu escolhi o impossível. Eu escolhi... Rapture. Uma cidade onde o artista não temeria a censura, onde o cientista não estaria preso a uma moralidade mesquinha. Onde os grandes não seriam contidos pelos pequenos.

E com o suor da sua testa, Rapture pode ser sua cidade também.

(Apresentação da cidade no elevador)

E assim, Rapture seria construída e viveria muitos anos em surpreendente prosperidade. Até que, naturalmente, os abusos de mercado começam a acontecer pela cidade inteira. É ético um hotel cobrar mais caro de uma família que acabou de perder sua casa para um problema na vazão de água, sabendo que eles não terão outra opção a não ser ficar lá? É ético você comprar o serviço de coleta de lixo da região e parar de coletar o lixo do seu concorrente para espantar os clientes?

Para responder a estas perguntas e a outras bem mais complexas, temos que olhar para a fonte filosófica do jogo: o trabalho de Ayn Rand.

A Man Chooses

Retrato de Ayn Rand

Alisa Zinovyevna Rosenbaum nasceu em São Petersburgo, na Rússia, em 1905. Parte de uma família burguesa, foi obrigada a fugir com seus familiares para a Crimeia após a revolução de 1917, que desapropriou muitas posses de seu pai. Devido a estes eventos e ao contato que teve com vários pensadores enquanto cursava filosofia, criou um repúdio inato ao coletivismo, mudando-se para os EUA em 1926 após a invasão soviética e alterando seu nome para Ayn Rand.

Bastante familiar, não é? Andrew Ryan foi explicitamente baseado nela e o enredo de Bioshock em sua principal obra, A Revolta de Atlas, na qual ricos ficam cansados da interferência estatal em sua empresa e desaparecem sem deixar rastros.

A filosofia de Rand recebe o nome de objetivismo. Ela tornou-se famosa por rejeitar o altruísmo em prol do que chama de egoísmo ético, a defesa de que não há base ética que o obrigue a ajudar ninguém. No campo da política, ela defendeu o capitalismo laissez-faire (a sua forma mais radical de ausência de regulação estatal no mercado) e a quebra do monopólio da força pelo estado, sendo a favor de polícias e exércitos privados.

Também é importante lembrar que muitos outros autores contemporâneos dela estavam lá para dar origem, complementar e expandir suas ideias, tais como Milton Friedman e Friedrich Hayek. Essa turma teve grande influência mundial, pautando governos como o de Margaret Thatcher no Reino Unido, Ronald Reagan nos EUA e Augusto Pinochet no Chile.

Estes pensadores são a base filosófica da política moderna libertária de direita. Mas afinal, o que compõe essa base? Em suma, seus adeptos são contra três coisas:

  1. Paternalismo. Leis que protejam você de você mesmo. Um libertário é contra leis como uso de cinto de segurança obrigatório, uso de capacete em motocicleta, vacinação obrigatória, não dirigir bêbado, não usar certas drogas... tudo isso era permitido em Rapture. Eles consideram que o Estado não deve ter o poder de dizer como você deve reger sua vida. Você é adulto, sabe dos riscos, portanto deve decidir por si mesmo utilizar coisas que são boas para você.
  2. Leis sobre a moral. Muito próximo do item 1, mas levemente diferente. Ao invés de leis que tentam te punir ao ir por um caminho considerado imoral, estas são leis que tentam promover virtudes escolhidas pelo Estado. Aqui entram coisas como divórcio, homossexualidade e prostituição. Em Rapture, contanto que todos os envolvidos estivessem consentindo, não haveria o menor problema em realizar nenhuma das atividades mencionadas.
  3. Redistribuição de renda. Os libertários são absolutamente contrários a qualquer lei que obrigue pessoas a ajudar outras, incluindo impostos. Certamente é desejável que ricos ajudem os mais pobres, mas isso deve ser de toda maneira facultativo. A renda de uma pessoa é sua propriedade e é dela para fazer o que quiser.

Como podem ver, a súmula do pensamento gira em torno da autonomia do indivíduo. Autonomia possui diferentes definições, mas no geral é a capacidade que uma pessoa tem de tomar decisões por si mesma seguindo um padrão de regras morais. Esta é, inclusive, a fonte da liberdade (mais sobre isso adiante).

Temos aqui uma vertente que pressupõe um indivíduo consciente, informado e capaz de tomar as decisões que julgue serem melhores para si. E mesmo que ele esteja errado e for pelo caminho oposto ao que for melhor para ele, não devemos interferir, pois isto seria limitar sua autonomia e por consequência, liberdade.

Deixando isso claro, é hora de ver como Bioshock mostra uma sociedade que segue o libertarianismo à risca – e suas consequências.

A Slave Obeys

Sander Cohen

Um dos vilões mais emblemáticos do jogo é Sander Cohen. Ele foi atraído com a promessa de uma arte livre de censura, um lugar onde poderia romper as barreiras tradicionais que limitavam a expressão humana.

Estas expressões humanas começaram com seus funcionários expressando nudez ao ar livre, fantasias de animais e “atuações” envolvendo violência real entre eles. Aos poucos, ele foi se tornando cada vez mais ousado e seus funcionários cada vez mais dependentes financeiramente dele. Ele começou a exigir administração de drogas em suas performances, posteriormente realizando procedimentos para alteração de seus corpos e até mesmo mutilação e assassinato para compor obras.

Em um segmento do jogo você chega a encontrar com Cohen. Ele o prende na parte da cidade da qual é dono (já que não existem espaços públicos, somente privados) e exige que o ajude a completar sua obra para sair dali. Ela é uma série de quadro com fotografias de assassinatos que você deve cometer, seguradas por corpos humanos engessados vivos.

Captura de tela deste segmento do jogo

Se fôssemos seguir à risca o objetivismo, supondo que as pessoas a serem assassinadas consentissem com findar sua vida em prol de uma obra de arte, a única objeção nessa história toda seria a de Cohen lhe trancar em seu bairro contra sua vontade. Tudo que descrevi a mais seria permitido, porque são duas partes – Cohen e seus funcionários – livres, tomando decisões consentidas e autônomas. Mas será que são livres mesmo?

Comentei antes dessa seção sobre como a autonomia é a fonte da liberdade. Eis o que quero dizer com isto: o que nos diferencia dos outros animais é a nossa capacidade de ser racional. Eles seguem apenas o que seus instintos de sobrevivência e reprodução permitem que sigam. Não possuem ponderação moral sobre suas escolhas, portanto não se guiam por nenhuma ética pessoal. Logo, não possuem autonomia.

Casal de leões comendo uma zebra (Os leões não ponderaram sobre o assassinato da zebra e a julgaram merecedora desta punição, muito menos pesaram os benefícios de sua caçada ou com quem deveriam compartilhar a carne. Eles só sentiram fome e agiram para sobreviver)

Isto é uma linha de pensamento básica que revela como a autonomia está ligada necessariamente à capacidade racional de um ser. Ora, se você não tem capacidade para pensar, não consegue tomar decisões; logo não tem autonomia, muito menos liberdade. Isto implica em uma outra pergunta, uma que os objetivistas esquecem de se fazer: toda escolha humana é racional e autônoma?

A resposta para esta pergunta é não. Quando Sander Cohen chega a uma pessoa que está passando fome – ou seja, sem satisfazer suas necessidades instintivas de sobrevivência enquanto animal –, oferece aquele tipo de trabalho e a pessoa aceita, não podemos afirmar que esta é uma escolha autônoma, tampouco livre. Afinal, é uma escolha que não passa por ponderação moral ou ética. Ela precisa comer.

Isto demonstra o porquê de um mercado sem regulação ser abusivo e não ser de fato livre. Não são decisões consentidas, as pessoas que estão nesta situação possuem sua autonomia reduzida. E se uma pessoa não tem autonomia plena, não pode fazer um acordo qualquer. Esta regra também vale para pessoas com deficiência intelectual, demências e transtornos psicóticos, por exemplo. São indivíduos cuja situação (social, biológica ou psicológica) não permite que haja uma decisão com verdadeira liberdade.

Mas e se permitisse? Suponhamos agora que Sander Cohen não aborde uma pessoa em extrema pobreza, mas o próprio Andrew Ryan, pessoa mais rica de Rapture, e este aceitasse vender seus órgãos para compor uma obra de arte. Esta decisão foi consentida, certo? Isto deve ser permitido?

Os objetivistas diriam que sim, mas sabemos intuitivamente que há algo de errado com esse acordo. É esquisito pensar nisso porque a corrente liberal está tão difundida em nossa cultura que temos a tendência a supervalorizar o papel do consentimento em um acordo. E vou dar dois exemplos que mostram isso na prática e podem acontecer no nosso cotidiano:

  1. Troca de figurinhas: você abre um pacote de figurinhas colecionáveis em uma loja e consegue a sorte de tirar uma com altíssimo valor. Outros colecionadores, ao perceberem o produto raro, conseguem convencê-lo a trocar em outras várias figurinhas, as quais você aceita. Ao contar essa história para um amigo dias depois, você descobre que perdeu milhares de reais no lugar de algumas figurinhas que custam centavos. Essa troca foi justa? Dificilmente. Este é um bom exemplo para mostrar que somente consentimento voluntário não produz acordos justos.
  2. O carro quebrado: você está dirigindo em uma estrada rumo a outra cidade a trabalho. No meio do caminho, perto de um vilarejo, seu carro quebra, com sorte perto de um mecânico. Você então decide primeiro telefonar para seu chefe e avisar que irá se atrasar, o que demora uns 15 minutos pois o sinal de celular é ruim e você precisou caminhar um pouco. Ao retornar, você descobre que o mecânico saiu de sua oficina e consertou seu carro neste meio tempo, que era um problema simples. Ele então cobra um valor adequado pelo seu serviço. Essa exigência do mecânico é justa? Para a maioria das pessoas, sim, afinal você teve um benefício em troca do serviço dele, mesmo sem pedir. Diferente do primeiro, este exemplo serve para vermos que o consentimento nem sempre é necessário para um acordo justo.

Por isso que o acordo entre Cohen e Ryan parece tão absurdo. Ele é consentido, mas uma das partes está tendo um malefício muito maior (a morte) do que um possível benefício. Enquanto o oposto é verdadeiro para a outra parte, que ganha reconhecimento, dinheiro e fama com pouca ou nenhuma perda. É um acordo extremamente injusto.

Em suma, o pensamento libertário se equivoca ao presumir que toda escolha de mercado é livre e que o consentimento é a base para todo acordo justo. Isso só pode levar ao desastre – extorsão, exploração, escravidão e o surgimento de desigualdade e criminalidade. O que levou Rapture a seu fim algumas poucas décadas depois foi justamente ter atendido todas as demandas de seu idealizador; foi a sua história natural.

Somewhere, Beyond the Sea

Com o fim desse texto, gostaria de dizer que Bioshock é um jogo muito complexo que pode ser abordado de diversas maneiras – não à toa foi meu maior texto até então – e isso porque só abordei a bagagem filosófica de Andrew Ryan e a história superficial de sua criação.

Junto desta refutação ao egoísmo ético dentro da própria ética liberal (com uma pitada de John Rawls ao fim), temos vários argumentos contra o pensamento libertário, dentro de outras teorias ou até mesmo do mundo prático. Ninguém vive em um mundo isolado, as ações que outras pessoas fazem nos atingem em maior ou menor grau. Muitas questões são em um grau pequeno ou até mesmo irrelevante. Em outras, têm consequências enormes.

Pense comigo: Rapture era uma cidade submarina. Logo, há um serviço de controle do ar na cidade para ser possível a vida humana ali e naturalmente ele é privado. Imagina que louco seria, várias pessoas confinadas em um mesmo espaço dependendo do bel prazer de um grupo de indivíduos para poder sequer respirar? O que acontece com o poder de negociações do dono deste serviço? Que autonomia têm seus funcionários? Ou seus clientes?

Campo poluído com plástico e lixo, céu escurecido de poluição

Vivemos isso com a indústria fóssil, agropecuária e o aquecimento global, além de nossa má manutenção do lixo. Estamos confinados à Terra. Mesmo que você esteja vivendo de maneira sustentável em tudo que seja possível, de nada adianta se todo o resto da população planetária não age nos conformes. Um indivíduo tem a liberdade de explorar e poluir sua propriedade o quanto quiser? Mesmo que essa decisão individual impacte seus vizinhos, ou até o mundo se sua propriedade for grande o suficiente?

Isso também ocorre com o movimento antivacina, que é a favor da liberdade de escolher o que quer colocar em seu corpo, mas ignora que está sendo vetor da morte de pessoas; com pessoas que defendem a caça como esporte, principalmente com animais em extinção; e em menor grau, com as pessoas que defendem liberdade de expressão irrestrita, ignorando o fato de que outras pessoas podem não gostar do que se foi dito e expressar sua rejeição.

Rapture implodiu em conflitos devido à ganância e inimizade extremas nas relações entre seus cidadãos. Isso é um alerta, não precisamos seguir o mesmo caminho e rumar cegamente à nossa extinção. Lembremos que quando se trata de sobrevivência de um indivíduo, a escolha é sempre automática e instintiva; e com a humanidade não deveria ser diferente.

Por Rafael Marinho Normande

Salão de festas em Rapture

#jogo #bioshock #filosofia #ética #política #pandemia