Nope

A pedidos, comentários sobre o mais novo filme de Jordan Peele, um dos melhores diretores em atividade. Também trago esclarecimentos sobre outras plataformas nas quais escrevo.

Esse texto contém spoilers.

Comentei rapidamente sobre ele no meu perfil no Letterboxd, mas me pediram para falar mais e explicar melhor os pontos que destaquei lá. Quem deseja ler o que escrevi quando assisti pela primeira vez, só clicar aqui.

A propósito, gostaria de avisar que ando escrevendo lá sobre os filmes que vejo e que muito dificilmente se tornarão textos aqui no blog. Como exemplo, estou maratonando a franquia 007 desde o seu início com 007 Contra o Satânico Dr No (1962). Caso te interesse não só saber o que ando assistindo como bater um papo sobre o que achamos de filmes, pode me seguir lá.

Dito isso, vamos olhar Nope!

Capa de Nope

Comentários

Disse no Letterboxd que este é um filme sobre crueldade animal em nome do espetáculo e a fixação humana pela calamidade. Pra mim, o exercício da descoberta do tema é o melhor dos filmes do Jordan Peele. Ele pega histórias e elementos de terror já explorados à exaustão e oferece um significado por trás, tal como um mágico que traz um truque já conhecido do público e adiciona uma reviravolta impressionante.

Isso acontece tanto em Get Out! (2017) com histórias de assassino e em Us (2019) com o conceito de doppelgänger, que apesar de terem um enredo superficial envolvente, é no subtexto que está o real valor da obra, sendo respectivamente sobre racismo e a cultura americana. Acho inclusive que é um spoiler maior falar o tema do filme do que revelar detalhes sobre a trama. É um aspecto curioso e único dos roteiros de Peele, que são sempre brilhantes.

Falando de roteiro, este mantém o padrão de qualidade. Vi muitas críticas afirmando que, por ter um roteiro complexo, a mensagem geral do filme iria passar batido do público como um todo, mas discordo bastante. Creio sim que associações mais sensíveis e sutis não serão descobertas de primeira por todos (como o fato de mencionarem que ninguém pergunta quem foi o cavaleiro estrela do primeiro filme da história, mas ninguém sabe a história do cavalo, mesmo os personagens que estão acostumados a olhar pelo lado dos que não têm voz), mas o tema é suficientemente óbvio para ser compreendido pelo espectador médio. Não pretendo analisar o tema central a fundo por esse motivo e porque outros críticos já fizeram isso.

Também disse no Letterboxd que Peele diminui as caracterizações em favor do desenvolvimento. O que quis dizer é que todo personagem aqui, por mais que tenham profissões, personalidades e vidas diferentes, quando suspeita ou descobre a existência do alienígena sente-se atraído ao ponto da obsessão, fazendo-o agir de maneira completamente inesperada em relação ao que sua caracterização sugere. À superfície parecem diferentes, mas frente à situação tensa, todos convergem.

Um exemplo é o Angel Torres, cujo perfil sugere ser mais um jovem desinteressado cool trabalhando com vendas, mas quando surge a curiosidade, rapidamente se transforma em uma pessoa dedicada e útil, mesmo tendo lapsos de pânico. Dizia Robert McKee em seu livro Story: só conhecemos quem os personagens são de verdade nas escolhas que fazem sob pressão. Nope pouco se importa com outro tipo de escolha, até mesmo quando decide mostrar o cotidiano de suas vidas, estão pressionados de alguma forma. E quanto maior a pressão, maior a revelação sobre quem eles realmente são.

OJ em seu cavalo, ao final do filme, pronto para salvar sua irmã

Por coincidência enquanto escrevia esse texto, topei com comentários do cineasta brasileiro Kleber Mendonça Filho sobre o filme (podendo ser lidos aqui) e ele trouxe um ponto muito interessante que é a câmera enquanto agente de registro, seja ele político, histórico, de propaganda, etc. Os protagonistas são operários do cinema tentando usar a câmera para seu registro, o diretor Antlers Holst morre tentando capturar a cena perfeita... como já dito o tema do filme critica o nosso fascínio pela escatologia e gore, essa audiência doente que damos a tragédias; não à toa quem está por trás da câmera está disposto a tudo para isso.

Acho natural nos debruçarmos tanto sobre o roteiro que é o que chama mais atenção nos filmes do Peele, mas também acho importante mencionar a direção cuidadosa e repleta de referências cinematográficas dele (assim como o design de produção incrível). Passando pela ficção científica até a fantasia de horror e o faroeste, similar ao Tarantino ele traz recortes de elementos que funcionaram em outros filmes para usar no seu da melhor maneira, com sentido temático e significado. É um presente visual levado pelo sempre ótimo Daniel Kaluuya e pela (recém descoberta por mim) ótima Keke Palmer.

Houveram comentários que a montagem era problemática, chegando a ficar confusa em alguns trechos. Honestamente não tive problemas com ela, salvo em alguns detalhes pouco relevantes. A questão é que quem teve essa percepção talvez tenha captado algum resquício de uma sequência removida, afinal foi noticiado que o primeiro corte tinha 03 horas e 45 minutos.

Foram retirados 01 hora e 35 minutos de filme, incluindo todo um arco com outro personagem que era obcecado pela série de TV que Jupe fez parte quando pequeno, mais especificamente obcecado pela atriz principal. Acredito inclusive que a aparência dela na atualidade e o sapato eram conceitos a serem explorados durante esse arco, mas foram deixados à interpretação do público para dar significado (o que respeito, mas pessoalmente desgosto).

Cena do filme com o sapato equilibrado em pé

Por último gostaria de falar sobre o final. É certo que o filme tem um final feliz, com os irmãos se livrando da ameaça alienígena, ambos com saúde e conseguem a prova cabal tão desejada. A questão é: será que conseguir essa foto foi uma coisa boa?

É uma pergunta que não vi ninguém fazendo, mesmo entre os críticos que se propuseram a debater as nuances de Nope. Particularmente, saí com um sentimento agridoce em relação a essa conquista, como se não fosse o correto. Citando novamente McKee, todo personagem tem desejos, mas nem sempre o que ele quer está alinhado com o que ele precisa. A maior parte das histórias possuem este modelo de arco de desenvolvimento, sendo inclusive senso comum, clichê. Quantas vezes você não viu um filme no qual o personagem começa a história perseguindo um objeto ou destino e, vivenciando os eventos ao longo do filme, percebe que o que ele realmente precisa era valorizar algo que estava ali o tempo todo, como amizade, amor ou família?

Após maiores reflexões, reforcei minha crença de que realizar esse desejo foi um destino trágico para os irmãos Haywood. O que eles realmente precisavam era compreender as necessidades das criaturas, o ciclo vicioso de espetáculo e lucro em cima de tragédias e animais inocentes no qual estão inseridos e escolher sair dele. Mas os vícios da tentação de dinheiro e fama falaram mais alto, sendo inclusive recompensados. No subir dos créditos, se o público sai com a sensação de que tudo terminou bem, é porque ele também faz parte do problema. Similar a Get Out, cuja reviravolta no final só funciona porque racismo existe.

Será que a punição a esse vício vem depois? Será que, assim como o cavaleiro que estrelou o primeiro filme, eles também serão esquecidos, sem conquistar a fama que tanto buscam?

Súmula

Filme incrível. Design de produção e direção de altíssimos níveis, atuações boas e fotografia linda. Devido à enorme edição do corte final, alguns podem estranhar a montagem, mas nada que estrague a experiência, podendo nem ser notado. O destaque sem dúvidas é o roteiro, unindo um enredo clássico e vazio do início do cinema (histórias de terror sobre alienígenas) com um subtexto relevante e complexo.

Fonte inesgotável de reflexões, especialmente em um mundo pós pandemia ávido por espetáculos. Deixo a citação bíblica utilizada pelo filme em inglês, já que o texto em português usa sinônimos que fogem de Nope:

“And I will cast abominable filth upon thee, and make thee vile, and will set thee as a spectacle.” (Naum, 3:6)

Abaixo algumas recomendações de filmes excelentes que provavelmente vão gostar se gostaram de Nope.

Por Rafael Marinho Normande

#cinema

Recomendações

Filmes sobre alienígenas feitos por diretores autorais:

Contatos Imediatos de Terceiro Grau

A Chegada

Sob A Pele

Filmes que tratam da obsessão da sociedade pela escatologia e espetáculo:

O Abutre

Laranja Mecânica

Relatos Selvagens