O Valor de Adaptações

O que a série de The Last Of Us nos ensina sobre o principal problema de adaptar jogos?

Capa da série com os protagonistas em foco

Adaptações de jogos para filmes ou séries costumam ser sinônimos de desastres absolutos desde os anos 90. Nas poucas vezes em que uma obra conseguiu ter uma qualidade sequer mediana, era celebrada pela comunidade.

Isso acontece por um problema muito específico que os produtores de cinema, no geral, não entendem ainda. Um problema que passa por discussões sobre o valor da fidelidade ao produto original e uma hierarquia entre diferentes formas de arte.

No momento em que escrevo isso, assisti somente ao primeiro episódio da nova série de The Last Of Us (2022) e já percebi esse mesmo problema, que explicarei ao longo desse texto. Além disso, percebi algo mais: a semelhança profunda entre a produção da série e o remake de um filme clássico.

Incubação

Norman Bates encarando a câmera, 1960

No ano de 1960, o lendário diretor britânico Alfred Hitchcock nos presenteou com um dos melhores filmes de todos os tempos – algo que ele fazia com certa recorrência. E uma das marcas de Psicose no cinema foi sua estrutura inconvencional de roteiro.

Algo impensável para a época, sua protagonista é morta na metade do filme, no assassinato mais famoso da sétima arte. O público, confuso, assistia o filme se desenrolar cada vez mais e a história continuar, seguindo agora os coadjuvantes enquanto tentam descobrir o que houve com a protagonista.

Outro ponto importante é a reviravolta final do filme, com a vilã não tendo controle de suas próprias ações. Em um tempo onde a moralidade prevalecia na arte, ter uma situação complexa na qual não existia um vilão objetivamente mau era também uma novidade.

O impacto desse filme foi tão grande para o cinema que a ideia de um remake parecia impossível. Mas, em 1998, decidiram explorar essa ideia sob as mãos de outro talentoso diretor, o norte-americano Gus Van Sant.

Norman Bates encarando a câmera, 1998

Com uma tarefa tão importante em mãos, Gus gostaria de explorar um conceito que ele ainda não viu ser testado. O que acontece quando o remake é igual ao original? Quadro a quadro, diálogo a diálogo, 100% fiel?

Ele nunca havia visto algo assim antes e, com o intuito de testar novos rumos para a arte, decidiu prosseguir com um novo filme 100% idêntico ao anterior. O mesmo design de produção, mesmo roteiro, mesma fotografia, mesma trilha sonora, tudo com exceção dos atores e da presença de cor era igual. O resultado foi um fracasso de público e crítica, algo que ele já sabia que era uma possibilidade de acontecer, mas o artista dentro dele precisava saber.

Em um tempo que somos dominados por remakes e sequências baratas, um filme que à primeira vista parece também mais um produto mercenário revela uma ânsia artística no mínimo interessante. A série de The Last Of Us compartilha muito dessa história e vai além, tocando em um ponto no limite da definição de arte.

Imersão

Comparação entre cenas do jogo e da série

A principal pergunta que Gus fez foi: qual o valor de uma refilmagem idêntica? A experiência é a mesma? Deve ser medida igualmente?

E o público respondeu de maneira contundente: não. Não devem sequer ser comparadas porque, mesmo sem perceber, valorizamos a originalidade. Não consideramos equivalentes uma produção que teve que realizar tudo “do zero” e conseguiu funcionar e outra que pegou algo já estabelecido e tentou repetir, especialmente se for exatamente igual. Em outras palavras, se você vai refilmar ou adaptar algo, espera-se que você traga algo de novo para contribuir.

The Last Of Us (TLOU), apesar de ter um roteiro bom, nunca pôde ser chamado de original. Citando alguns pontos mais gritantes:

No entanto, é do espetacular Children Of Men (coincidentemente, também de 2007), que o jogo tira sua inspiração direta, tendo semelhanças ipsis litteris em vários aspectos.

Cena do filme, com o ator principal Clive Owen

Dito isso, mesmo reconhecendo que o jogo não tem um roteiro tão original (e honestamente, anos-luz abaixo de sua inspiração), ele tem um aspecto que dá uma outra dimensão para a sua história: a jogabilidade.

Veja bem, eu acredito que, do ponto de vista imersivo, jogos têm a capacidade de ser a forma de arte mais profunda de todas. Da mesma forma que um filme, por ser uma obra audiovisual, naturalmente estimula mais sentidos que um livro e portanto consegue ser mais imersivo, jogos possuem essa mesma vantagem em relação aos filmes pois colocam você como protagonista, tomando decisões, sendo ativo na ação e tendo liberdade de ditar o rumo da história.

Mesmo em jogos como TLOU, que não possuem escolhas narrativas ou o que chamamos de mundo aberto, você ainda toma inúmeras decisões em um combate, como gastar seus recursos, qual o ritmo que deseja progredir na história, etc. Então mesmo que seja uma história que você já tenha visto várias vezes, você nunca viu ela imersiva dessa forma.

É isso que os produtores de cinema e televisão ainda não conseguiram entender. O real valor de muitas dessas obras está no fato de ser jogável, de você ter esse nível a mais de decisão, ser um personagem ativo na história. Ao “regredir” a uma mídia objetivamente menos imersiva como é o cinema, sobra só o roteiro que na melhor das hipóteses é medíocre.

Se um estúdio decidiu adaptar um jogo, ele precisa ter em mente que para dar certo, mudanças radicais são necessárias, similar a adaptar um filme para um livro. Às vezes uma cena só funciona porque possui elementos audiovisuais acompanhando e, sem esse suporte, a leitura do mesmo enredo pode ser tediosa.

Tendo isso em mente, quais mudanças a série de TLOU fez?

Transmissão

Cena com Joel e Ellie

Logo no início, a série abre com um debate entre dois cientistas num programa de televisão. Nele, surge a comparação entre infecções por vírus e por fungos.

Eu gostei muito dessa cena. Ela significa que os realizadores estão cientes de que falar de pandemia em 2013 é muito diferente de falar em 2023, além de estarem dispostos a dialogar sobre o que se passou com a covid-19. Logo, senti falta quando não há recompensa para essa cena no episódio.

Claro, por se tratar de uma série, é possível que venham a desenvolver os temas aos poucos e dar as recompensas posteriormente, mas ainda deixou um gosto agridoce na boca quando percebi que, além dos primeiros cinco minutos, não haveria nada que eu não tivesse visto no jogo. Não somente isso, contado da mesma forma, com a mesma fotografia, diálogos, até mesmo figurinos.

Evidente que não precisavam mudar tudo, mas qual valor darei a essa experiência se já vivi ela de um jeito muito mais imersivo dez anos atrás? Chega a ser triste ver cenas repetidas, com os realizadores achando que o impacto narrativo que tiveram no jogo seria mantido em uma produção cinematográfica.

Como exemplo temos a da fuga no carro à noite, que é tão marcante no jogo justamente pela mobilidade que você tem de se mover no banco traseiro enquanto ainda controla Sarah e poder olhar todo o caminho à sua volta. Na série, estamos presos ao que a câmera filma. E novamente, não é que se torna ruim, porém perde todo um grau de profundidade e interação que tem um peso considerável. Resta apenas mais uma cena funcional.

Cena descrita no jogo

Se você não jogou o jogo, só imagine você desde o início estar controlando a Sarah, sendo levada por Tommy e Joel no carro. Enquanto eles discutem o melhor caminho para fora da cidade e passam por tentativas e erros, você observa os vários sinais de que há algo muito errado acontecendo, casas pegando fogo, carros abandonados, pessoas pedindo socorro... e você escolhe para onde quer focar sua visão.

Tommy decidiu não parar para socorrer aquela família, você pode se virar e observar as consequências dessa decisão, ou tentar seguir o raciocínio deles e manter a câmera na frente, sem olhar pra trás.

Poderia escrever um extenso texto sobre como eles usam o design da jogabilidade para construir narrativa, mas o ponto é que existem várias pequenas escolhas como essas que alteram a sua experiência e estão ausentes na série pela própria natureza da arte que escolheram produzir.

Conclusão

Talvez tenha sido só o primeiro episódio que foi formulaico assim, mas acho improvável. Acredito que a série seguirá somente repetindo o enredo esperando o mesmo impacto. Enquanto não entenderem o problema da imersão, seguiremos com filmes e séries medianas.

No momento lançaram três episódios e pretendo assistir tudo. Não sei o que acontecerá com a série quando alcançarem o final do primeiro jogo e precisarem partir para novas histórias, mas acho que será aí que a fragilidade da adaptação como um todo vai ficar evidente.

Espero estar errado! Essa série tem potencial para ser muito boa caso ousasse mais na linguagem audiovisual, nos poucos momentos que percebi algo do tipo foi uma grata surpresa, como no uso de sapatos no corpo sem vida de uma criança fazendo uma rima visual, semelhante a A Lista de Schindler (1993).

Outro exemplo dos criadores percebendo as diferenças entre a comunicação dos jogos e das séries foi a adição de pequenas hifas móveis dos fungos nas bocas dos infectados, elemento visual fantástico (no sentido de irreal) ausente no jogo pela eficiência dessa mídia em comunicar diferentes tipos de inimigos. Não sei se foi a melhor decisão, vai depender do uso no futuro, mas mostra que eles ainda estão de certa forma atentos a esse problema.

Enfim, uma pena que sua “concorrência” é a direção brilhante de Alfonso Cuarón. Fica também a recomendação para você que gosta de The Last Of Us assistir a essa obra-prima!

Por Rafael Marinho Normande

Capa de Children Of Men

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