The Batman

Comentários sobre o novo filme de um dos super-heróis mais populares da história.

Este texto contém spoilers.

Poster do filme

Quando vi a notícia de que Batman ganharia mais um filme, há uns anos, meu sentimento foi de preguiça. Só mais um filme para fazer dinheiro em cima do universo cinematográfico da DC, já que a trilogia feita por Christopher Nolan não fazia parte dele.

Após um tempo, anunciaram que o diretor e roteirista desse filme seria Matt Reeves; um artista muito talentoso que gosto bastante, tendo ficado conhecido por seu trabalho na mais recente trilogia Planeta dos Macacos. Pouco depois, revelaram que o Batman seria interpretado por Robert Pattinson e, bom:

You had my curiosity, now you have my attention

Comentários

Felizmente, o filme é bom. Longe de ser a obra-prima revolucionária que fãs emocionados berram aos sete ventos, mas é bom. Nele podemos ver a diferença que é ter uma visão artística por trás das câmeras.

A abertura desse filme é sensacional, iniciando tal qual os filmes noir que tem como inspiração. Vou comentar um pouco mais sobre ela porque, além de possuir muitas qualidades que vão se repetindo pelo resto do filme, também é o suficiente para expor resumidamente seus principais defeitos.

Ele abre com um plano em primeira pessoa de alguém observando os moradores de uma casa grande com um binóculo enquanto houve Ave Maria. Não sabemos quem são, quem os observa ou porquê. Logo depois, o filme traz belos planos-detalhe muito bem pensados para nos mostrar como o desconhecido invadiu a casa e, através da televisão e de uma conversa no telefone, conseguimos entender que o morador é o prefeito de Gotham. O desconhecido também é revelado de um jeito tão simples quanto eficiente – o vilão do filme, Charada.

Depois disso, o assassinato ocorre. E como Robert McKee gosta de chamar em seu livro Story, temos o incidente incitante do filme. Isto não só nos situa no enredo e nos investe na narrativa, como também nos dá um aviso: este não é um filme de ação, é um filme sobre investigação criminal, claramente inspirado nos filmes do David Fincher, entre eles Se7en, Zodíaco e Garota Exemplar, mas sem o visual gráfico devido ao limite de idade de 13 anos.

A sequência que se segue – de vários crimes simultâneos pela cidade, com narração do Bruce Wayne explicando o significado e importância do medo na construção de seu alter-ego – é fenomenal. Por mais que esteja cansado de narrações de fundo, neste caso não me importei. Não consigo ver uma forma melhor de expressar as ideias que o texto traz com o impacto que ele traz, ainda acompanhado daquela montagem cirúrgica e uma belíssima fotografia feita por Greig Fraser (outro artista talentosíssimo que está indicado ao Oscar 2022 por Duna), culminando na entrada avassaladora do Batman saindo das trevas.

Até então eu estava impressionado não só por esses elementos, mas também pelo trabalho de som do filme. Nós ouvimos as botas do Batman pisando nas poças trêmulas pela chuva e ecoando pelo corredor antes de aparecer o plano-detalhe acertadíssimo trazendo a imagem, para que possamos entrar no tema exposto pela narração, tendo a experiência de sermos vítimas da própria imaginação.

Batman em luta com um capanga

Infelizmente, tudo isso rui quando o primeiro vândalo avança e Batman o soca diversas vezes, porque o mixador (pessoa responsável pela mixagem de som) falhou miseravelmente na reprodução do som de um soco. Eu tenho um palpite distante que, em união com o design de produção, ele tentou fazer o som de um soco na chuva, com a pele e couro das luvas molhadas. O resultado, para mim, acabou mais parecido com socar uma almofada debaixo d'água.

Isso permanece ao longo de todo o filme, deixando as lutas (que são mal coreografadas) sem peso, similar ao que acontece no péssimo Aquaman (2018). É um problema minimizado pelas escolhas criativas envolvendo as lutas e do próprio gênero do filme, mas volta a incomodar a cada combate tal qual aquele corte minúsculo que só recordamos quando entramos no mar.

Falando do gênero, esta é outra promessa da abertura que é quebrada com o final horroroso desse filme. A impressão que tive foi que os produtores exigiram uma longa sequência de ação no final com a cidade toda em risco porque “não é um filme de super-herói sem o mundo inteiro estar em perigo”, não é mesmo?

Batman guiando civis com uma luz vermelha

Com exceção desse plano que não só é lindo como impactante, o final foi uma bagunça sem rumo, fechando em uma narração preguiçosa e desnecessária, cheia de frases de efeito vazias que nada acrescentam às imagens e ao subtexto do filme (inclusive atrapalham). Chegou ao ponto de que poderiam eliminar todo o terceiro ato do filme e refinar melhor as outras partes que seria muito melhor. Ele pouco tem a ver com o que estava sendo construído até então e só ressalta todas as fragilidades do longa, especialmente as que envolvem o roteiro.

E o roteiro não falha só no terceiro ato; ele é inconsistente na qualidade durante todo o filme. Temos várias cenas que não se encaixam com outro adjetivo a não ser brega, com a fotografia e direção tentando trazer peso emocional a um enredo raso. Logo me vem à mente as cenas da prisão do Falcone e da descida do Batman à água. O roteiro destoa tanto da direção que eu fiquei com a sensação de “por que tantos policiais e esse plano intimidador? Vazaram mais coisas? Estão aí para prender o Batman?” ou “por que essa trilha épica e essa fotografia heroica mostrando ele cortando a corda? Ele vai se matar? Por que faria isso?” somente para entender de fato o que se passa e dizer “ah... que merda”.

Ao mesmo tempo, temos várias cenas brilhantes com uma das coisas que mais gosto em filmes: rimas, tanto no texto como no subtexto. Dois exemplos que gostei bastante:

  1. A entrada do Batman e depois do Bruce Wayne, na mesma balada da mesma forma, com diferentes reações às duas figuras e a relação oposta que essas reações têm com o personagem (Batman, confiante, recebido com agressão; Bruce, solitário, recebido com acolhimento);
  2. Falcone evocando uma memória de estar à beira da morte e ser salvo por Thomas Wayne enquanto olha para Bruce de baixo para cima; depois novamente estando à beira da morte e olhando para Batman de baixo para cima enquanto as duas visões opostas de mundo deles se encontram – Bruce tentando salvar Falcone não por consideração, mas por dever com a vida, tal qual seu pai sob o juramento de Hipócrates (herdando os “pecados do pai”) e Falcone por sua vez acreditando que Bruce estava do seu lado, com semblante de surpresa ao descobrir a identidade secreta, e depois de gratidão ao ver que ele tentou ajudar.

Bruce e Falcone

Em nenhum desses dois exemplos essas coisas são ditas, elas são mostradas, às vezes em poucos segundos. É um jeito muito efetivo de se desenvolver a trama e personagens quando se tem uma direção em alto nível. Foi uma lição que, como já mencionei, o filme esquece ao final, perdendo sua delicadeza e cuidado.

Essa inconsistência também aparece quando analisamos os personagens do filme. Por um lado, temos personagens como Batman e Mulher-Gato, bem estabelecidos e desenvolvidos. Por outro temos personagens como o Jim Gordon, limitado ao clássico arquétipo do policial negro too old for this shit; Pinguim, cuja única função narrativa em todo o seu tempo de tela é corrigir um erro de tradução; Alfred, que sobrevive à explosão somente para sumir quando o roteiro precisava que sumisse e acordar quando precisava que acordasse (inclusive desfazendo uma cena de 30s atrás); e o próprio Charada, que surge na abertura como um serial killer metódico e calculista, mas revela-se uma criança birrenta com amigos no 4chan em uma cena também brega.

Achei essa última escolha patética, também fugindo da construção excelente da abertura. Consigo entender de onde ela veio, afinal a existência de grupos organizados de incels na internet é um tema com muita relevância social, nos EUA principalmente, e é uma oportunidade de falar sobre a identidade do Batman enquanto vigilante. Porém, insinuar que esses grupos são perigosos ao ponto de orquestrar um plano super elaborado (que só funciona em filme devido aos furos enormes de roteiro, mas sigo) é desconhecer seu próprio material de trabalho.

O único momento verossímil em relação ao modus operanti desse perfil é o final, com um grande ato terrorista e um tiroteio contra pessoas indefesas. São pessoas imaturas, em sua maior parte adolescentes, que agem na base da emoção buscando um grande palco. É uma prática de violência rude, só pegar uma arma e atirar no máximo de inocentes possíveis. Seu planejamento se resume a quando e onde fazer isso, apenas. O resto das ações do Charada é tão crível quanto seria a Al Qaeda fazendo assassinatos temáticos e mandando cartas criptogradas com enigmas para a polícia ao invés de atos terroristas envolvendo explosões.

Charada preparando uma cena para a polícia

Acho que esse filme seria muito melhor se o Charada de fato fosse o que sua apresentação prometeu, um psicopata frio que quer desafiar as habilidades investigativas da polícia e do Batman. Esse comentário sobre os perigos da internet fomentar radicalismo em pessoas vulneráveis, que de tão improvisado ficou superficial, poderia ter sido guardado para uma sequência, igual a O Cavaleiro das Trevas.

Não sei se lembram, mas no início do filme de 2008 há vários cidadãos que se vestem de Batman e tentam ajudar ele a combater o crime. Nesse caso funciona porque está totalmente dentro do conflito principal do roteiro: Batman e Coringa disputando a alma de Gotham.

Às vezes nós achamos que um caminho é o correto na arte, mas a obra desesperadamente grita por outro. A pergunta que Cristopher Nolan fez foi: será que o Batman realmente entende a cidade que defende? Já a que Matt Reeves deveria ter feito abordando o herói em seu segundo ano de atuação era: será que o Batman tem a capacidade intelectual de fazer o que faz?

Súmula

Batman andando com chamas atrás

The Batman para mim é um filme similar a Sicario; tem direção, montagem, fotografia, design de produção e atuações de alta qualidade, mas o roteiro segura o filme como o padre irlandês segurou Vanderlei em 2004. Poderia ter sido o primeiro colocado, mas chegou em terceiro.

Vende-se como uma investigação criminal, mas falha na pesquisa de seu material base e na coerência dos planos do vilão, que possui conveniências e furos absurdos. Além disso, a classificação indicativa impede que saia da sombra de suas inspirações, continuando derivado e genérico.

Mesmo assim é um passo na direção certa. Não assisti ao filme como um borrão sem sal dentro de um contexto industrial maior como assisto aos da Marvel. Ele é um filme com a assinatura de seus artistas, seus talentos e deslizes. Que seja um sucesso e que tenhamos mais originalidade e autoria dentro dos super-heróis. Vale o ingresso!

Gostou do filme? Vou deixar abaixo sugestões de filmes sensacionais que são na mesma pegada, além dos já citados do David Fincher.

Por Rafael Marinho Normande

#cinema #dc #batman

Sugestões:

El Secreto de tus Ojos

Chinatown

O Silêncio dos Inocentes Blade Runner

Eyes Wide Shut

Memórias de um Assassino