Tribuna do Basquete – Mérito

De que forma o valor dos salários pode afetar um time? Como isso se relaciona com ética e mentalidade?

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Draymond Green e Jordan Poole se cumprimentando

É comum encontrarmos essa discussão entre mérito pessoal e o seu valor monetário em todos os esportes, até mesmo além das quadras. Imagine se a distribuição salarial do seu local de trabalho fosse amplamente divulgada como a da NBA. O que mudaria nas relações entre colegas? E entre empregadores e chefes?

Quando se trata do ambiente profissional, discussões sobre quem merece o quê podem gerar frustrações e ressentimentos ainda mais profundos comparados com outras áreas da vida, o que traz à tona a necessidade de entender melhor de onde vem esses sentimentos (especialmente se é tão difícil a privacidade e sigilo como na NBA).

Por mais improvável que seja, para chegar nesse entendimento é necessário observar a história das religiões.

Antropocentrismo

Pessoa distante em um plano aberto preto e branco

Em seu livro “A Tirania do Mérito”, Michael Sandel, professor de filosofia da cadeira mais concorrida de Harvard, narra a evolução do pensamento religioso em torno do cotidiano.

Na antiguidade, acreditava-se que somente os deuses poderiam decidir o que acontecer. Chuvas, secas, marés, caça, catástrofes naturais, guerras... nós poderíamos rezar, mas a vontade deles prevalecia. Mesmo em religiões monoteístas como o cristianismo, a crença equivalente existia de que somente Deus determina quem será salvo, além de nosso alcance.

Sandel refere-se a este conjunto de crenças como “ética da fortuna”. Isto significa que pouco controle temos sobre as bonificações da vida, quem decide quem vai receber o quê é a fortuna, que naquela época remetia ao divino.

Com o passar do tempo, surgiu o que ele chamou de “ética do domínio”. Nas mais diferentes áreas do conhecimento, especialmente durante o Renascimento, a necessidade de tornar o homem o objeto de poder se estabeleceu.

Nada mais era mais fruto de bênçãos; se você conseguiu algo, foi porque você tomou as decisões certas e foi recompensado por isso – o resultado foi fruto do seu mérito. Este pensamento foi até a religião, trazendo ideias como a de que você pode garantir seu lugar no céu por merecimento se faz boas ações, dentro do cristianismo (inclusive este é o principal ponto de divergência entre as suas correntes: podemos determinar quem é mais merecedor da salvação divina por suas ações ou pensar assim é achar que o homem tem poder sobre a vontade de Deus?).

A Criação de Adão, por Michelangelo Buonarotti, 1511

Enfim, este é um debate teológico complexo, mas o ponto é que a ética do domínio também invadiu o nosso cotidiano secular, ou seja, mesmo fora do âmbito da religião. Ninguém hoje crê que seus bens ou resultados vieram de sorte ou bênção, mas sim de seu mérito. E é difícil refutá-la.

Se conseguiu passar em um curso na universidade foi porque estudou bastante, se comprou sua casa própria foi porque trabalhou muito e juntou dinheiro, se chegou a ser selecionado no top 5 do draft foi porque treinou mais que outros... não percebemos outros aspectos além de nosso controle.

Uma vez que compreendemos essas duas correntes opostas de pensamento, podemos nos perguntar: o que acontece quando você adota uma ou outra?

O Imensurável Peso do Talento

Primeiro falando sobre a ética do domínio, que é a prevalente hoje. O que pode haver de errado com atribuir completamente a responsabilidade ao mérito? Afinal, trabalho duro objetivamente aumenta suas chances de ser recompensado com resultados e pensar que podemos atingir grandes objetivos somente com nosso suor pode ser fonte de grande motivação.

Acredito que seja fácil perceber como pensar dessa forma pode ser positivo, porém, temos que também considerar alguns pontos. Um deles é que você também é responsável pelos fracassos. Se você nega todos os fatores externos que influenciam na sua vida, o que acontece de ruim nela também cai nas suas costas. E nem todo mundo tem a resiliência de Kobe Bryant para lidar com o peso da derrota.

Temos vários casos de um indivíduo ou time sentindo esta frustração e não aguentando. Quantas vezes não vimos uma série de playoffs mudar completamente por causa de uma derrota? Ou a carreira de um jogador mudar completamente? Recentemente acompanhamos os dramas de Ben Simmons e Russell Westbrook que exemplificam isso.

Ben Simmons em lance crucial no jogo 7, 2021

Outro ponto é que, se os seus resultados (leia-se: o seu salário) são frutos do seu mérito, significa que eles refletem o seu valor. Por consequência, se um colega ganha mais que você, a conclusão é de que ele vale mais que você, pessoalmente.

Naturalmente é uma receita para conflitos. Nesta off-season, tivemos a briga entre Jordan Poole e Draymond Green, que muito embora tenham outras razões até mesmo imediatas, foi noticiado de que o catalisador da briga foi a extensão salarial de ambos. O time estava priorizando negociar com Poole e deixando Green para depois. Óbvio que ninguém lê mentes aqui, mas provavelmente Green ficou ressentido ao pensar que seu valor está abaixo de alguém que acabou de chegar, já que ele está lá desde o início dessa geração vitoriosa e, portanto, deveria ser melhor apreciado.

Deandre Ayton parece ser outro jogador afetado por essa situação. Ele acreditava que deveria receber a extensão máxima e o Phoenix Suns só concedeu quando outro time tentou contratá-lo. Aquele que era o melhor time do oeste está neste momento com o vestiário rachado e discussões constantes durante os jogos.

Outro exemplo bem comovente, em evidência devido às polêmicas recentes, é o de Scottie Pippen e os Chicago Bulls. Scottie, que era muito pobre, convivia com duas pessoas cadeirantes em seu núcleo familiar (seu pai e seu irmão) e era o responsável por carregá-los quando necessário, isto é, diariamente para que pudessem deitar e levantar da cama.

Devido a esse hábito, Pippen convivia com lesões crônicas em suas costas que estavam piorando com o tempo, e quem conhece a carreira dele sabe como esse problema marcou grandes momentos. Na incerteza de saber até quando poderia jogar e precisando garantir o sustento de sua família, resolveu assinar um contrato muito longo (18 milhões em sete anos) mesmo sabendo que poderia ter conseguido mais, porque não queria arriscar o bem estar de seus entes queridos.

Scottie Pippen e Michael Jordan

Em pouquíssimo tempo o valor salarial que era bom em 1991 ficou defasado e Pippen, mesmo sendo parte essencial de uma das maiores dinastias do esporte e entrando pra discussão de segundo melhor jogador do mundo (atrás apenas de seu colega de time Michael Jordan), seis anos depois era o 128º maior salário da liga e o sexto maior do seu time, atrás de jogadores como Luc Longley.

Essa disparidade entre sua produção enquanto jogador e seu salário o fazia sentir como se os Bulls não o valorizassem o quanto ele merecia, muito embora ele tenha concordado com os termos na época. O fato gerou toda uma série de conflitos pesados entre ele e o gerente do time, Jerry Krause, ao ponto das pessoas envolvidas na época evitarem dar detalhes para poupar o público. O que sabemos é que envolvia humilhações, xingamentos e até ameaças. Pippen também foi afetado dentro de quadra, como no famoso episódio que se recusou a jogar por não achar que estava sendo valorizado o suficiente por Phil Jackson.

Será que essas histórias teriam um final melhor se os envolvidos tivessem uma outra mentalidade?

A Linha da Humildade

Jimmy Butler dando entrevista após um jogo

Jimmy Butler, principal jogador do Miami Heat, foi colocado em 17º na lista de melhores jogadores desta temporada da liga pela ESPN, ficando atrás de nomes como Trae Young e Karl Anthony-Towns. Essa foi talvez a decisão mais criticada da lista, inclusive por jornalistas da própria ESPN.

Ao ser perguntado sobre o assunto, eis o diálogo que ocorreu, podendo ser visto o vídeo aqui:

Repórter: Não sei se você presta atenção nesse tipo de coisa, mas a ESPN te colocou em 17º na lista de melhores jogadores da NBA... Butler: Sério? Isso é muito bom! Repórter: Você acha que tem 16 jogadores melhores que você hoje? Butler: Provavelmente. Sei lá, deve ter uns 25. Eu aceito onde estou, não me preocupo com isso, 17 parece muito bom. [Lembrando] De onde eu venho, 17?! Isso é muito bom.

Escolhi este exemplo de propósito porque muitos confundem a ética da fortuna com falta de ambição ou conformismo. Aqui temos uma das pessoas mais competitivas da liga mostrando a principal consequência natural desse pensamento: a gratidão.

Jimmy reconhece que teve uma vida muito difícil, por muitos fatores imprevisíveis que ele não podia controlar. Nasceu pobre, seu pai o abandonou, sua mãe o expulsou de casa, não teve oportunidade de estudar ou treinar de maneira ideal, chegou a passar fome... e hoje está aí, quase liderando um time para a final do principal campeonato de basquete do mundo pela segunda vez.

Sabendo disso e de todos os fatores que contribuem para o sucesso ou fracasso de sua performance (lesões, companheiros de time, seus adversários, etc), naturalmente ele conclui que não podia ter chego ali sozinho por seu próprio mérito, apesar de todos os esforços. E por conta disso, não só ele aceita melhor resultados que não pôde controlar, como também fica muito mais grato pelo que já conquistou e foi benéfico para ele. É assim que funciona a ética da fortuna.

Jimmy se esforçou muito, o que certamente aumentaram suas chances para o sucesso, mas sem ter amigos próximos que o acolheram quando estava morando na rua; sem professores que se aproximaram e ajudaram a terminar os estudos; sem a universidade dar oportunidade a um desconhecido para entrar no seu programa de basquete... todo o esforço dele poderia ter sido em vão.

Draymond Green, Klay Thompson e Stephen Curry

Outras estrelas, como Stephen Curry e Giannis Antetokounmpo, também são conhecidos por sua humildade e gratidão por tudo que conquistaram. Este vive esbanjando gratidão e alto astral até mesmo com coisas simples, como agradecendo a Deus por ter provado Oreo com leite, também tendo um passado muito conturbado assim como Jimmy. Já aquele, ao quebrar o recorde da temporada regular de cestas de três pontos na temporada passada, presenteou seus companheiros de time com relógios de luxo como agradecimento por terem o ajudado a chegar lá.

Estes são modelos não só para o basquete, mas para a vida. Não necessitamos abandonar nossas ambições para reconhecer o que nos foi dado até então. Sempre continuar buscando melhorar, porém nunca esquecendo o quão sortudo nós somos por chegar até aqui.

Fábrica de Basquete

Para finalizar, deixo aqui uma citação de um técnico que, graças à sua parceria com um jogador, transformou seu time no padrão ouro de humildade, agradecimento e desenvolvimento. A fala completa (bem mais longa) pode ser vista aqui.

Eu não estaria aqui se não fosse por Tim Duncan. Eu estaria na Budweiser League em algum lugar na América, gordo e tentando jogar ou ensinar basquete. Ele é a razão de eu estar aqui. Ele fez a vida de centenas de nós, corpo técnico e funcionários, ao longo dos anos e nunca fez uma reclamação, só vinha trabalhar todos os dias. Chegava cedo, ficava até tarde, estava ali para todo mundo, do topo até o último do elenco, porque ele é assim.

(Gregg Popovich, após o anúncio da aposentadoria de Tim Duncan em 2016.) Por Rafael Marinho Normande

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