Tribuna do Basquete – O que é exatamente a cultura de uma equipe e o impacto no talento dos jogadores

Recentemente fui convidado a colaborar com uma página de basquete no Instagram que gosto muito. Este é um texto que fiz como teste e espero que hajam muitos outros.

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Charles: Você sabe o que penso sobre o Russell Westbrook. Eu o admiro, o respeito, e é hora dos Lakers o trocarem. Eles roubaram toda a sua alegria na vida e no basquete. Ernie: Baseado em que você afirma que a alegria dele foi roubada? Charles: Porque esse cara era tão exuberante, jogava com grande energia e emoção... acho que o desgaste mental do ano passado somado com ser titular esse ano, jogar com o Patrick Beverley... e o pior é que ele ainda vai levar a culpa no final [desta temporada]! Porque o Lakers não é um time brigando pelo título!

Ao receber o convite para escrever na Tribuna do Basquete, eu fiquei muito feliz. Neste momento, sou grato por poder contribuir com essa comunidade sedenta por conhecimento do esporte que amo.

Refletindo sobre o que poderia falar na primeira publicação, me deparei com esse comentário acima (podendo ser visto na íntegra aqui) do Charles Barkley sobre a infelicidade de Russell Westbrook nos Lakers e a problemática da culpa dentro do time.

Isso me fez pensar: será que ele se sente excluído do grupo, um obstáculo no caminho do entrosamento? Se sim, teria como reconstruir uma cultura de companheirismo em LA? O que é exatamente a cultura de um time e como ela impacta no talento dos jogadores? Estas são as perguntas que tentarei responder com esse texto.

LeBron James e Anthony Davis, próximos, e Russell Westbrook ao longe, separado

Impacto Cultural

No documentário The Redeem Team (2022), uma das primeiras coisas que o técnico Mike Krzyzewski percebeu quando assumiu o posto foi justamente a falta de propósito na seleção americana. Eles eram somente um amontoado de jogadores da NBA servindo como propaganda, sem jogar juntos ou muita dedicação envolvida. O mundo tinha alcançado os EUA e os vencia no jogo coletivo.

Qual foi sua prioridade? Construir uma cultura de grupo. Fez isso ao recrutar Kobe Bryant para o time (que comentarei mais adiante) e ao chamar as forças armadas americanas para dar depoimentos sobre confiar no seu companheiro e dar sua vida por ele em uma guerra.

Alguns possuíam sequelas permanentes dos conflitos, todos em prol de sua nação e seus companheiros combatentes. Um deles, Scottie Smiley, ficou cego para o resto de sua vida. Após as falas, os militares também permaneciam nos treinos para assistir os jogadores. Quem treinava inclusive utilizava um microfone na camisa, para que Smiley pudesse ouvir e acompanhar o que estava acontecendo.

O objetivo desta presença íntima antes, durante e depois dos treinos era trazer o sentimento de responsabilidade. Ao ter ali homens que passaram por tantas tragédias os assistindo, eles incentivavam os jogadores a se doarem tanto quanto eles. E vemos tanto nas entrevistas quanto nas filmagens da época que surtiu um efeito muito positivo na seleção, notoriamente em Dwyane Wade, que se emocionou muito com esse contato.

Wade e Kobe com a mão ao peito ouvindo o hino nacional dos EUA

Coach K compreendeu que, assim como no exército, talento bruto não era suficiente para trazer bons resultados se não houver uma cultura de time, todos unidos cooperando em busca de uma meta em comum. Isto é verdade em empresas ou até em setores essenciais como hospitais, delegacias e escolas. Se não houver um sentimento mútuo de cooperação e ambição no grupo, a tendência é a mediocridade.

Apesar do exemplo bem sucedido do Coach K na seleção, outro técnico teve uma compreensão ainda mais profunda para lidar com essas dinâmicas de grupos.

A Hierarquia Tribal

Em seu livro “Os Onze Anéis”, o lendário técnico Phil Jackson explica uma filosofia que se apropriou de um livro sobre liderança, “Tribal Leadership” de Dave Logan. Nele, os grupos são divididos em 5 estágios de entrosamento e cultura tribal. São eles:

  1. A vida é uma merda: Nesse primeiro estágio, há uma percepção niilista da vida, gerando um comportamento hostil, combativo, rebelde, desesperado. Grupos nesse estágio são marcados por competição interna e sentimentos de impunidade, irrelevância.
  2. Minha vida é uma merda: Ocupado por grupos de pessoas apáticas, que se fazem de vítimas de injustiças o tempo todo, cheias de julgamento, sarcasmo e passividade.
  3. Eu sou o máximo (e você não é): Estágio cuja prioridade é a realização individual. O grupo nessa fase é formado por pessoas que transformam a vitória em uma questão pessoal. O resultado é a permanência no clima de competição, gerando um “conjunto de lobos solitários”, que não agem como um time.
  4. Nós somos o máximo (e vocês não são): Aqui sim, essa convicção primordial de um propósito comum alinha os valores do grupo e estimula a cooperação. Normalmente envolve um adversário forte e quanto maior ele é, mais poderosa a união da tribo se torna.
  5. A vida é o máximo: Estágio raro. É quando o grupo transcende a mera cooperação e se agrega por indivíduos apaixonados pelo momento, por suas atividades e pela vida. É onde inovações transgressoras acontecem.

Chicago Bulls na comemoração do título de 1995-96

Phil comenta que o trabalho mais delicado de um técnico de basquete é diagnosticar o estágio do grupo e de cada um de seus membros, que podem estar em estágios diferentes mentalmente, para incentivar e pressionar na medida exata que necessitam.

Quando ouvimos de jogadores, técnicos ou jornalistas sobre a “cultura” de um time, com frequência estão se referindo a algo parecido com essa hierarquia tribal. E ela influencia diretamente no comportamento dos jogadores, em sua devoção às jogadas, no altruísmo, na vontade, na sua felicidade... se em uma posse crucial o juiz marca uma falta duvidosa, dependendo do estado mental do jogador, ele pode desde desistir do jogo com a atitude “minha vida é uma merda” ou pode ignorar e confiar no seu grupo ganhando mesmo contra a arbitragem (nós somos o máximo e vocês não).

Tenho certeza que enquanto descrevia as diferentes culturas tribais, vários times pipocaram na sua mente, times que às vezes nem possuem o talento bruto, mas conseguem competir em alto nível através de trabalho duro e jogo coletivo. Agora, quando um time está um estágio longe do desejado, como mudar para melhor?

Mutualismo

No início da temporada 2021-22, dois times estavam com altas expectativas, muitos fãs já dando como certo seu encontro nas finais; eles eram os Los Angeles Lakers e os Brooklyn Nets. Ambos falharam miseravelmente em fazer uma boa campanha. Nets ficou em sétimo lugar no leste e foi varrido no primeiro round pelo Boston Celtics. Os Lakers não conseguiram nem chegar na pós-temporada.

No momento que escrevo este texto, ambos os times possuem duas vitórias e cinco derrotas. O curioso é que os dois times escolheram caminhos muito diferentes para resolver seus problemas de entrosamento.

Gráfico de eficiência dos times da NBA datado de 28/10/22

Como podemos ver no Power Ranking da NBA, representado visualmente neste gráfico, Lakers possui uma das melhores defesas da liga (desde a publicação desse gráfico, já subiu para ser a segunda, atrás somente dos Bucks), mas também possui o pior ataque. O Nets por outro lado é o contrário; tem um ataque razoável, mas é nulo defensivamente.

Obviamente esses resultados também são fruto das características pessoais dos jogadores envolvidos. Porém, o técnico novo do Lakers, Darvin Hamm, vem desde sua contratação falando no foco defensivo, no quão importante a defesa é, que é sua prioridade e etc. E vem entregando.

Jogadores como o Westbrook, que nunca foi conhecido pela defesa, estão tendo a melhor temporada defensiva da sua carreira. Vários jogadores novos, até desprezados por outros times, também defendendo com vigor e técnica. Desnecessário falar da âncora do time, Anthony Davis, um dos favoritos ao prêmio de Defensor do Ano (se o grego deixar).

Por que estou focando nisso? Porque é o mesmo motivo da convocação de Kobe Bryant para o Redeem Team. No documentário, Carmelo, LeBron e Wade comentam sobre toda a intensidade que Kobe trouxe para o lado defensivo da quadra, fazendo o “trabalho sujo” que precisa ser feito para vencer, inspirando todos no time a jogar mais intensamente. Óbvio que ele também contribuiu de diversas outras formas no extra quadra devido à sua mentalidade e rotina (como grandes jogadores fazem), mas nada disso tem valor se você não mostra a que veio durante o jogo.

Kobe defendendo o jogador com a bola pela seleção

No ataque é possível que um jogador carregue e crie oportunidades para si, sem precisar de ajuda. Já a defesa só funciona se todos estiverem defendendo bem. É muito fácil para um time que cria uma identidade defensiva criar o sentimento de união e subir na hierarquia tribal, porque ali estão todos no mesmo barco. Todo mundo precisa se ajudar para funcionar. Todos dependem de todos.

Isto é tão verdade que basta olharmos os melhores times na temporada passada, presentes nas finais de conferência, e veremos as melhores defesas da liga. Tão verdade, que o melhor time da temporada 2022-23 até agora é o Milwaukee Bucks, invicto, com a melhor defesa da liga e um ataque medíocre. Tão verdade, que um dos ditados máximos na NBA é “defesa ganha campeonatos”.

O resultado? Vemos indícios de uma cultura se formando nos Lakers. Juan Toscano-Anderson defendendo Westbrook de uma pergunta sobre seus arremessos e depois aparecendo treinando com sua camisa no dia seguinte. Westbrook também parece se sentir mais à vontade e disposto a se sacrificar pelo time saindo do banco (o que tem rendido bons momentos do time).

Enquanto isso, Steve Nash, ex-técnico do Nets, disse que “Ben Simmons não precisa saber arremessar, porque nós temos quem faça isso, ele vai contribuir de outras formas”. O time já possui dois dos maiores jogadores de 1x1 da história, egos conflitantes e é implementado um sistema focado em contribuição individual ao invés do coletivo aos novos jogadores... o desfecho percebemos na posição do time no power ranking e na demissão de Nash.

Nash e Simmons conversando à beira-quadra

O Destino

No mesmo livro, Phil Jackson comenta um provérbio budista que o acompanhou principalmente durante a reconstrução do Lakers nos anos 2000:

“Antes da iluminação, cortar lenha e carregar água. Depois da iluminação, cortar lenha e carregar água.”

Isto é, o que expliquei aqui é um futuro imutável? Não. É possível que mesmo tendo uma cultura de união, Lakers tenha resultados medíocres e o Nets mesmo sendo individualista chegue mais longe, o basquete é dinâmico. As maiores chances apontam para este caminho, mas tudo depende se vão continuar a cortar lenha e carregar água, jogo a jogo.

Por Rafael Marinho Normande

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