𝗔𝗹𝗰𝗼𝗼𝗹𝗶𝗰𝗼𝘀 𝗔𝘂𝘁𝗼𝗻𝗼𝗺𝗼𝘀: Adicção e Sobriedade Para Além da Recuperação

Jack Fontinell Esta é a segunda vez que eu tento escrever este ensaio. A primeira vez eu pensei que era sobre mim. Desta vez eu sei, eu sinto, é profundamente sobre “nós”, ou algum tipo de “nós” que pode ainda não ter sido formado ou pode estar em sua própria formação hoje. O importante é que se trata sempre de algo maior do que você ou eu – mas é exatamente tão grande quanto você ou eu jamais poderíamos imaginar que fosse.

Contra o vício Há muitos termos utilizados para o fenômeno do consumo de substâncias em um grau considerado pela sociedade como perigosas ou destrutivas. “Abuso de substâncias” e “vício” são provavelmente os mais comuns. O “abuso de substâncias”, de acordo com o Google Dictionary, é definido como “excesso de indulgência ou dependência de uma substância viciante, especialmente álcool ou drogas”. O problema óbvio com esta definição é que a maioria das sociedades aceita um grau de uso de substâncias como normal e a linha em que isto se torna “excesso de indulgência” e, portanto, “abuso de substâncias” é inconsistente e culturalmente definida. O consumo diário de café, por exemplo, é aceito na maioria das culturas. Onde não é este o caso, no entanto, beber café todos os dias pode ser considerado abuso de substâncias. Da mesma forma, é aceitável em muitas culturas que se experimente a maconha algumas vezes, e algumas vezes é considerada abuso de substâncias se usada mais do que algumas vezes, e algumas vezes é aceitável que se use todos os dias, dependendo de quem você perguntar. O termo “vício1”, talvez, forneça uma descrição um pouco mais precisa. Segundo a Merriam-Webster, “vício” é definido amplamente como “uso compulsivo persistente de uma substância conhecida pelo usuário como sendo prejudicial”. O Google Dictionary fornece uma definição alternativa: “o fato ou condição de ser viciado a uma determinada substância, coisa ou atividade”. Com base nestas definições, deve-se concluir que nossa sociedade, e cada indivíduo, está repleta de vícios. Usar tecnologia, trabalhar em um emprego, comer a maior parte das coisas que se encontram nas lojas, puxar ferro, e injetar heroína são todos vícios. Este é um ensaio contra os vícios. É escrito com o reconhecimento de que nossas vidas não estão, e talvez nunca possam estar, livres deles. É um reconhecimento de que a luta contra o vício é também uma luta contra o império e as categorias que ele nos impõe. Este não é um ensaio neutro. Este não é o Programa de Doze Passos. Os termos usados para se referir ao processo de não mais ser viciado em uma substância também são, em sua maioria, inúteis. Alguns termos comuns são “recuperação”, “estar limpo”, ou “sobriedade”. Não vou usar o termo “recuperação”, pois parece apontar para um antigo eu, um “eu não viciado”, ao qual se poderia retornar. Não há outro eu ao qual retornar e nunca somos nada mais ou menos diferente do que somos neste momento. Eu nunca me recuperei e nunca me recuperarei. Eu simplesmente abracei as coisas que compõem esta outra coisa que chamo de eu e concordei em continuar me edificando ou me derrubando, dependendo de como eu me sinto em cada momento. Também não vou usar a palavra “limpo” pelas razões óbvias que isto implica que as pessoas que são viciadas são “sujas”, o que implica ainda mais todo tipo de racismo, classismo e valores burgueses da classe média. Neste ensaio, vou usar o termo “sóbrio” porque parece ser o menos problemático. Sóbrio, de acordo com o Merriam-Webster, é definido simplesmente como “não embriagado” ou “não viciado em bebida intoxicante”. Vou usar este termo, “sóbrio”, para me referir também à não-utilização de outras substâncias que alteram a mente, tais como drogas. Poder-se-ia argumentar que a maioria das coisas são drogas e que a maioria de nós não está sóbria, e talvez se esteja certo. Se algo vem à mente que você pensa que pode ser uma droga e se pergunta se talvez este ensaio seja sobre esta coisa, provavelmente é sobre esta coisa e a maioria das outras coisas que as pessoas usam para fugir de seus corpos ou alterar a percepção que seus corpos têm desta coisa que chamamos de mundo. Vou usar os termos “alegria”, “liberdade” e “autonomia”. Posso até usar o termo “amor”. Usarei estes termos com intenção. Não vou querer dizer com eles algo que seja uma abstração. Este ensaio será um ato de comunicação. Não será uma apresentação de nada que possa ser chamado de “fatos”. Em uma tentativa de fazer uma crônica de minha lista completa de credenciais, mencionarei o seguinte. Passei anos, a partir dos 12 anos de idade, usando coisas chamadas drogas e esta outra coisa chamada álcool que também é uma droga, mas registrada como se fosse algo mais por qualquer outra razão. Minha droga de escolha foram os opiáceos durante os anos que passei usando drogas pesadamente, mas também era conhecido por usar um grande número de anfetaminas, maconha, cigarros, x-bacons da Wendy’s, cocaína, e latas de chantilly em que eu sugaria o óxido nitroso e jogaria a lata pela janela. Minhas drogas de escolha para ser viciado agora que não sou mais um viciado são o café, várias formas de crime, e ideias abstratas que não consigo entender bem, mas gosto de fingir que entendo bem. Se você me perguntar hoje porque usei drogas, terei muitos argumentos extravagantes e bem fundamentados sobre o porquê de ter usado drogas por causa da sociedade, do império ou do capital. Se você me perguntasse quando eu tinha 17 anos por que eu usava drogas, eu teria dito “porque me apetece, vai te foder”. Quando escrevo sobre minhas experiências usando drogas estou escrevendo através da lente de uma pessoa que é definida como a mesma pessoa, mas agora tem 25 anos e filtra essas experiências através da lente dessa pessoa de 25 anos. Quando eu tinha 16 anos bati meu carro em uma árvore porque estava sob efeito de uma mistura de hidrocodona, dextroanfetamina, cafeína e maconha, e meu corpo não gostou desta combinação neste dia em particular, e por isso tive uma convulsão. Como resultado desta experiência, fui preso e fichado por embriaguez e quase matei um amigo e quase me matei. Quando eu tinha 16 anos, perdi minha carteira de motorista por causa disso. Aos 16 anos, eu disse que nunca usaria “drogas pesadas”. Aos 17 anos, comecei a usar heroína e esta era a droga que eu gostava mais do que qualquer outra droga. Também experimentei fumar crack, mas geralmente não gostava. Eu nunca experimentei metanfetamina e, portanto, estou feliz por poder dizer que me mantive fiel ao meu compromisso aos 16 anos de nunca usar “drogas pesadas”. Minha progressão no uso de drogas aconteceu rapidamente e minha progressão para não mais ser viciado nessas substâncias em particular aconteceu lentamente. Eu estive em reabilitação ambulatorial pelo menos três vezes e fui suspenso da escola também pelo menos três vezes. Fui preso mais de três vezes, mas não consegui dizer quantas vezes. Fui uma vez à reabilitação ambulatorial por 40 dias e 40 noites e estou sóbrio desde aquele primeiro dia, 18 de agosto de 2010. Hoje é 19 de agosto de 2018, e eu apenas comecei a fingir entender o que tudo isso significa e escrever sobre isso.

Discurso sobre o vício Há muitas coisas que são ditas na mídia e em festas familiares sobre dependência e pessoas que são chamadas de viciadas porque as substâncias às quais são viciadas são consideradas inaceitáveis pela sociedade. Uma coisa que as pessoas gostam de dizer sobre aqueles que são viciados em substâncias de uma forma que não é socialmente aceitável é que tiveram infâncias ruins ou experiências excepcionalmente traumáticas. Algumas pessoas que se tornam viciadas em substâncias tiveram, de fato, experiências muito traumáticas, mas todos nós também tivemos experiências muito traumáticas e este mundo em que vivemos está repleto de traumas e a maioria das experiências nele são aterrorizantes. Eu não diria que já vivenciei algum tipo de trauma que eu descreveria como excepcional, embora eu conheça muitas pessoas, ou seja, mulheres ou não-homens cis, que experimentaram um trauma que para mim parece excepcional mas que, infelizmente, também não é excepcional e é, de fato, o estado de normalidade neste mundo. Algumas dessas pessoas usam drogas e outras não. Às vezes, ficar sóbrio requer abordar esses traumas subjacentes e às vezes requer a compreensão de que não há como escapar de um trauma a menos que haja uma fuga deste mundo. Quando eu digo “este mundo”, quero dizer o mundo que foi colocado sobre nós. Não me refiro à Terra, mas a uma certa percepção da Terra e das criaturas e estruturas de poder sobre ela. Quero dizer algo como “sociedade”, mas não quero dizer “sociedade” porque não acredito que algo como “sociedade” exista, embora eu já tenha usado, e continue a usar, a palavra para significar um grupo de pessoas com uma certa percepção da Terra e das coisas sobre ela. Este mundo é algo que a maioria de nós habita de certa forma, mas também é algo do qual podemos romper ou viver nas fendas dele. Um mundo é também algo que podemos construir e existem vários mundos neste lugar chamado Terra. O mundo a que me refiro quando digo sociedade é apenas um deles, embora possa ser o mais poderoso, por enquanto. A cura do trauma é frequentemente comercializada como um processo individual e às vezes é, mas o indivíduo nunca é uma coisa separada dos espaços que ele habita e a cura também é sempre um processo comunitário ou social. Se é verdade que tratar do vício requer tratar do trauma, então é verdade que tratar do vício requer tratar deste mundo e a necessária ruptura com ele que devemos fazer se quisermos levar o vício a sério. Requer abordar o colonialismo, o racismo, a misoginia e todos os tipos de outras mentalidades que nos foram ensinadas. Estamos todos muito traumatizados e precisamos muito de um novo tipo de cultura ou mundo. Não precisamos de mais médicos para nos dizer que estamos traumatizados; precisamos de mais espaços para falar sobre essas coisas coletivamente e desaprender tudo o que nos foi dito. Precisamos de novas maneiras de nos relacionarmos uns com os outros. Qualquer esperança de abordar verdadeiramente o trauma não será uma esperança individual, mas uma esperança cultural. Ela não nos será dada, ela será construída por nós. Outra coisa que as pessoas nos hospitais ou nas salas de aula da faculdade gostam de dizer é que o vício é uma doença. Estou olhando em um site sobre dependência que me diz que “a ciência moderna diz que a dependência é uma doença, não uma escolha”. A ciência moderna também trouxe a bomba atômica, usinas nucleares, formas indescritíveis de tortura e milho transgênico. Eu não aceito sugestões desta criatura chamada ciência moderna. O dicionário Merriam-Webster me diz que uma doença é uma “desordem de estrutura ou função em um humano, animal ou planta, especialmente uma que produz sinais ou sintomas específicos ou que afeta um local específico e não é simplesmente um resultado direto de dano físico”. Escrevo em meu caderno de anotações que a civilização moderna é uma doença e fico mais confuso sobre o que é realmente uma doença. Li a segunda definição, “uma determinada qualidade, hábito ou disposição considerada como afetando negativamente uma pessoa ou grupo de pessoas”, e me convenço ainda mais de que a civilização moderna é uma doença e começo a fazer planos para destruí-la. Também me convenço de que o vício é uma doença como a maioria das coisas, mas também é como a maioria das coisas. Em vez de continuar ponderando se o vício é uma doença, começo a me perguntar por que o capital poderia querer defini-lo dessa forma. O que ter uma doença implica sobre aquilo que você tem? Em primeiro lugar, implica que talvez exista algum tipo de cura ou curso de ação que possa erradicá-la (ou que talvez um dia possa existir) e que o mais provável é que essa cura ou curso de ação esteja disponível para compra em algum lugar em uma farmácia ou em uma instituição residencial especial que não aceite a maioria dos planos de saúde (apesar de seu website dizer que aceita a maioria dos planos de saúde). Também implica que não é culpa da pessoa que está usando drogas e que está simplesmente doente. Isto me faz sentir melhor porque a maioria das pessoas se sente mal por aqueles que estão doentes, mas eu não tenho nenhum argumento a favor ou contra isso, pois ainda não sei o que esta coisa chamada doença realmente é e as pessoas devem se sentir mal quando vêem seus amigos sofrendo, mesmo quando não têm doenças. Sei que nunca escolhi ficar viciado, mas também reconheço que fiz a maioria das escolhas que fiz enquanto viciado por minha própria vontade. Por outro lado, também sinto que posso ter sido possuído por algum tipo de demônio e não posso assumir nenhuma responsabilidade pelas coisas que fiz quando estava drogado ou roubando de meus amigos ou família para ficar drogado (sinto muito). Em última análise, “doença” é apenas uma palavra como qualquer outra que é usada para descrever um grupo de coisas que certos humanos acham semelhantes. O que importa é quais são as implicações de chamá-la de uma coisa em relação a outra. As implicações de chamar dependência de doença são melhores do que as implicações comuns de não chamá-la de doença que são que todas as pessoas que são viciadas são fracas (eu sou fraco) ou egocêntricas (eu sou egocêntrico). Seria preferível encontrar uma terceira maneira de falar sobre dependência que reconheça que pode ou não ser uma doença e que as pessoas que usam podem ou não ser egocêntricas, mas também que devemos apoiar amigos que desejam viver uma vida diferente daquela que estão vivendo agora, e às vezes até mesmo encorajá-los a viver uma vida diferente daquela que estão vivendo agora quando vemos a que estão vivendo agora, levando-os a uma morte inoportuna, a uma vida incompleta, ou a uma vida cheia de danos a outras pessoas. Pode-se argumentar aqui que a vida não é necessariamente preferível à morte ou talvez mesmo que a busca da morte é também uma busca nobre e seria difícil provar o contrário, mas este é um ensaio sobre a vida e para aqueles que querem viver uma vida, pois eu não sei como falar sobre a morte, pois eu não a experimentei – ou, se a experimentei, não me lembro dela. Poder-se-ia também perguntar se uma vida sóbria é inerentemente um modo de vida preferível. Embora eu pudesse dizer que certamente foi preferível para mim, não desejo fazer um argumento filosófico e certamente não um argumento moral para a sobriedade. Este não é um ensaio persuasivo. Não se trata de convencer ninguém a estar sóbrio. Este é um ensaio para aqueles que desejam estar sóbrios e estão procurando algo diferente do que foi oferecido a eles. É também um ensaio para aqueles que desejam usar drogas e estão à procura de algo diferente do que lhes foi oferecido. Trata-se de reconhecer as complexidades deste fenômeno que chamamos de vício e construir algo novo para enfrentá-lo, juntos.

Nós admitimos Se você já frequentou uma clínica de reabilitação ou um curso de psicologia ou leu uma revista sobre dependência, você ouvirá muitas coisas ditas sobre a forma como se deve ficar sóbrio e os passos adequados para manter essa sobriedade. A maioria destas coisas será declarada como fato e são fatos na medida em que todas as opiniões são fatos, mas também há outros fatos que podem não ter sido apresentados a você que devem ser considerados. A prescrição mais comum para a doença do vício é o “programa de 12 passos”. Existem hoje muitos programas de 12 passos, mas os mais comuns são Alcoólicos Anônimos (AA) e Narcóticos Anônimos (NA). Estes programas de 12 passos são apresentados como formas claras e concisas de se passar de um viciado a uma pessoa sóbria em 12 passos fáceis. Não desejo desacreditar estes programas, pois já os vi funcionando para muitas pessoas e até mesmo para mim mesmo durante um período de tempo. Em vez disso, gostaria de ressaltar que o que faz programas como AA ou NA funcionar não são os passos em si, nem a organização, mas algo mais. O primeiro passo dos 12 passos de Alcoólicos Anônimos afirma: “Admitimos que não tínhamos poder sobre o álcool – que nossas vidas haviam se tornado incontroláveis”. Este primeiro passo é simplesmente um reconhecimento de que o álcool, ou “nossos vícios”, como no caso de NA, são um problema. Embora esta admissão possa ser uma parte importante no processo de ficar sóbrio, ela não é a parte mais importante deste passo. Em vez disso, o importante aqui é o “nós”. Admitimos que éramos impotentes diante do álcool – que nossas vidas tinham se tornado incontroláveis. Desde o início do programa, é feita uma identificação com um “nós”. Ao invés de nos vermos como um indivíduo com um vício que precisa ser tratado individualmente, começamos a nos identificar com uma certa experiência comum entre as pessoas na sala de uma reunião. O eu começa a se tornar menos importante e começamos a nos ver como parte de uma certa coletividade. É esta coletividade que apresenta o verdadeiro potencial de sucesso de um programa como AA ou NA, mas não é apenas AA ou NA que pode oferecer isto. Este vínculo também pode ser encontrado em outro lugar. No vício muitas vezes não há reconhecimento de nenhum vínculo comum além do si mesmo e de uma certa prática. Neste sentido, o vício é uma certa forma de egocentrismo. O vício nos suga para a armadilha do ego, ele cimenta o eu. É um processo de isolamento e também muitas vezes um produto de isolamento. Isto não quer dizer que nunca existem laços formados em torno de não-sobriedade, mas que o vício existe fora desses laços e consome a vida além do que é mantido em comum. Isto não é verdade para todo o uso de substâncias, mas é verdade para o vício. O vício é abrangente, consome o corpo e a mente, é uma forma de viver, uma forma de viver para o eu. Quando começamos a sentir que não somos apenas um eu individual, mas parte de uma trajetória comum, começamos a encontrar uma razão para viver além de nossos vícios. Quando saí da reabilitação, me senti sozinho. A única coisa que eu tinha em comum com todos os meus amigos, exceto alguns, era que todos nós gostávamos de ficar chapados. Agora eu não tinha mais esta atividade em comum e, como tal, não tinha mais amigos ou qualquer sentimento de um “nós” do qual eu fazia parte. Isto é o que é desesperadamente necessário se quisermos permanecer sóbrios, mas o vínculo que compõe o “nós” não pode girar em torno do uso de drogas. Eu encontrei este “nós” em muitos lugares ao longo dos últimos oito anos. Quando comecei a me sentir mais alienado da maioria de meus colegas, procurei uma saída, um lugar onde sentia um certo vínculo ou vida em comum. Eu sabia que não queria beber ou usar drogas e também sabia que não era como a maioria das pessoas, então procurei por outras que pareciam não ser como a maioria das pessoas e que também não queriam beber ou usar drogas. Foi aqui que eu encontrei o straight edge2. O straight edge apresentou para mim um certo senso de identidade e comunidade que eu precisava desesperadamente. Também apresentava um certo conjunto de práticas. Apresentou uma certa forma de estar no mundo. Havia imagens prontas, atividades e grupos com os quais se identificar. Eu não era mais um indivíduo que lutava para permanecer sóbrio, eu era straight edge, e isso significava algo mais do que minha escolha individual de permanecer sóbrio. Eu era algo além de mim mesmo. Este é apenas um exemplo, e o que identifiquei como o “nós” do qual faço parte mudou e se transformou ao longo do tempo, mas esse é o ponto. Não há nada intrinsecamente melhor no “nós” do programa de NA ou no “nós” que possa ser encontrado em muitos outros grupos ou movimentos. Eu ainda me chamo de “ straight edge ” apesar dos moralismos e contradições do termo. Ainda me considero um anarquista, apesar de minha suspeita de rótulos ideológicos. Ainda uso meu cartão-chave de um ano de NA, apesar de minha desilusão com o programa de NA. Ainda não como carne, apesar do meu desdém pelo liberalismo do veganismo. Estas coisas me mantiveram vivo durante meus anos de sobriedade, proporcionando um senso de camaradagem. Eles me conectaram a algo maior do que esta coisa que eu chamo de meu eu.

Sobre o propósito Quando se deixa de usar pela primeira vez as substâncias às quais está viciado, muitas vezes existe um certo sentimento de insensatez, falta de significado e solidão que pode ser descrito com mais precisão como desespero. “Desespero”, segundo a Wikipédia, é uma “perda de esperança em reação a uma quebra em uma ou mais das qualidades definidoras do próprio eu ou da própria identidade”. A própria coisa que você passou anos fazendo não é mais uma parte de si mesmo – e na maioria dos casos esta foi de fato a parte definidora de você, pois consumiu toda a sua vida. Embora o desespero não possa ser evitado, o vazio de não ter nenhum propósito em sua vida é muitas vezes demais para desnudar e devolve muitos aos seus vícios muito rapidamente. Isto também é o que leva muitos à religião na forma de cristianismo, budismo ou ciência. Ao buscarmos um novo sentido e uma razão para viver, inevitavelmente encontramos religiões, uma vez que são os melhores publicitários. Elas têm as respostas mais amplamente aceitas e faladas para os problemas da existência. Elas oferecem uma visão clara de um mundo e do lugar do indivíduo dentro dele. Eles podem até mesmo ter muito sucesso em ajudar pessoas que eram viciadas em certas substâncias a não mais o serem. Eles oferecem tanto um propósito quanto um senso de comunidade em torno desse propósito. O problema, no entanto, é que eles não procuram abordar as estruturas que mais freqüentemente causam vícios. Em nível individual, estas instituições podem trabalhar para manter a pessoa sóbria, apaziguando o vazio através da oferta de respostas sobre a existência e promessas sobre o significado universal. Quando elas tentam trabalhar contra os vícios, no entanto, estão apenas agindo como Band-Aids. Às vezes são eficazes, mas não procuram corrigir as raízes do problema. Para termos um senso de propósito, não precisamos reconhecer um certo significado inerente à vida, pois provavelmente não existe tal significado. Ou, se existe, provavelmente nunca saberemos, embora às vezes eu sinta como se outros animais o soubessem e pudessem nos dizer se fôssemos melhores comunicadores. A beleza ou talvez a feiura desta inexistência de significado é que o que quer que se escolha fazer em cada momento é de fato o próprio significado de sua própria vida. O propósito de uma pessoa pode ser criado, destruído e recriado novo em cada momento. O que devemos procurar é criar as condições que permitam a plena realização deste propósito. Eventualmente, reconheceremos que a atualização de nosso significado no mundo irá inevitavelmente atingir os mesmos limites que outros atingirão em sua própria busca de significado. É aqui que começamos a encontrar algo em comum. Nossa busca pela alegria individual inevitavelmente entra em contato com esta coisa que chamamos de sociedade, ou este mundo, e ou cairemos novamente em desespero por nossa incapacidade de sermos livres, ou empreenderemos uma certa luta contra este mundo. É aqui que a busca individual da alegria se torna uma busca coletiva. Começamos a agir contra o desespero. Não por esperança, mas por necessidade. Para combater o vício, é necessário que encontremos vidas que merecem ser vividas. É importante notar aqui que há algumas formas de comunidade que não oferecem propósito e há algumas formas de propósito que não oferecem comunidade. A comunidade baseada no bairro em que você vive, por exemplo, não oferece finalidade. O único vínculo comum compartilhado é aquele em torno do espaço que você habita. Não existe uma percepção comum do mundo ou de como se deseja viver nele. Ela não oferece nenhum propósito, nenhuma trajetória. Na verdade, é discutível se se trata de alguma forma de comunidade. Pode-se também desenvolver um propósito muito individual que se concentra apenas em si mesmo e em sua própria trajetória no mundo. O que logo descobriremos, no entanto, é que nos sentiremos isolados e em desespero mais uma vez. Não nos identificamos com algo fora de nós mesmos e, como tal, ainda somos escravos de nosso próprio ego. Podemos retomar nossos vícios ou podemos nos resignar a uma vida de desespero. Devemos buscar significado e propósito individual no mundo, mas uma vez que o fazemos é necessário encontrar outros que compartilhem deste propósito, que levem este propósito além de uma busca individual.

Sobre a alegria O que buscamos, então, é a reconciliação entre o sentido do nosso propósito e a nós mesmos. É esta reconciliação, no caso do meu próprio vício, que me tem mantido sóbrio. Inicialmente, me alinhei com um certo discurso em torno do vício que era jogado em clínicas de reabilitação e cultos e senti que meu propósito era ajudar outras pessoas que sofriam com essa coisa chamada vício. Também me alinhei com uma certa comunidade nas reuniões de AA ou NA em um trailer em algum lugar atrás de uma igreja ou em um porão que compartilhava este propósito junto com um vício em café e cigarros. À medida que me enfastiei com o programa de NA, comecei a encontrar este propósito em diferentes porões centrados em torno do straight edge e do hardcore. Havia um conjunto de práticas com as quais me comprometi com outros que compartilhavam uma visão semelhante do mundo e eu sentia um sentido de significado em minhas ações. Com o passar do tempo, fiquei desiludido com irmãos hardcore que só queriam pogar no mosh alegando ser um movimento, e com punks competindo por capital social alegando que era política, e assim comecei a procurar em outros lugares. Envolvi-me mais na política radical e comecei a me identificar com pessoas que se reuniam em torno de diferentes laços e práticas fora da música. Encontrei pessoas que compartilhavam minha percepção do mundo e queriam agir no mundo para fazer uma realidade diferente. Acho esta linha em uma página do meu caderno: “Insurgência = fazer dos pensamentos um gesto prático. Atos de rebeldia são atos de verdade”. Não tem citações à sua volta. Não me lembro de tê-lo escrito. Procuro esta citação no Google e não encontro nada. Começo a me perguntar se talvez eu tenha escrito esta frase, mas não chego a nenhuma conclusão. No entanto, este sentimento é importante para aqueles que lutam contra os vícios. Quando nos tornamos sóbrios, o que precisamos desesperadamente é de uma verdade, de qualquer verdade. Encontramos esta verdade dentro de nós mesmos, pois não há verdade a ser encontrada em outro lugar ou se há, eu não poderia lhe dizer como encontrá-la. Deixamos esta verdade penetrar profundamente e se tornar uma parte de nós mesmos. O eu e esta verdade nos tornamos inseparáveis. No entanto, não paramos por aí. Reconhecemos esta verdade, nossa verdade, e desejamos torná-la realidade. Buscamos um gesto prático. Buscamos a promulgação de nossa verdade. Ao fazer isso, encontramos outros com uma verdade comum, uma visão comum do mundo, uma definição comum de alegria e miséria. À medida que encontramos outros na alegria, nossa verdade se expande. Os momentos de alegria que vivemos são os que existem nas fendas, as exceções à monotonia que nos rodeia. Nós nos tornamos uma força no mundo. Não somos a única força e não somos a força mais forte, mas estamos determinados. Começamos a agir, juntos.

Sobre a neutralidade Pode-se dizer aqui que uma coletividade e um senso de propósito podem vir de qualquer lugar, e que sua força policial local ou um grupo supremacista branco ou tornar-se um membro da sociedade da terra plana pode fornecer estas coisas e se estaria certo. Entretanto, este não é um ensaio neutro e eu não tenho nenhum investimento na sobriedade daqueles que eu acharia detestáveis de outra forma. Embora seja duvidoso que este ensaio chegue a qualquer um que esteja em vias de decidir se a comunidade da qual desejam fazer parte é um grupo separatista branco ou a força policial ou o Partido Democrata, permitam-me dizer algumas coisas sobre o porquê de estas serem escolhas inadequadas. Como já foi dito, uma certa nova forma de vida é necessária para lidar com o vício de qualquer maneira séria. Servir ao Império, na forma de militares ou policiais ou da Igreja Católica ou trabalhar para Tesla não é um propósito, é uma falta dele, é um padrão. É a busca de um novo enraizamento nos confins do mundo que foi colocado sobre nós. É uma inexistência. Existir verdadeiramente é posicionar-se contra certas idéias deste mundo de modo a se tornar realmente contra elas. Não ficar fora dos papéis que este mundo nos impõe, não faz de nós nada mais do que coisas. Somos peças de xadrez, movidas diariamente na busca de um propósito que nunca foi o nosso. Será que mergulhar na vida de um policial pode mantê-lo sóbrio? Possivelmente, provavelmente não, mas possivelmente não. Mas o que você terá feito? Você terá deixado de existir. Você terá perdido a oportunidade de identificar algo em si mesmo pelo qual vale a pena viver. Em vez disso, você receberá uma falsa oportunidade de manter uma realidade que não é de sua autoria e que apresenta apenas falsas promessas sobre seu bem-estar. Você estará sóbrio, mas terá perdido a batalha contra o vício. Você não existe. Uma vida dedicada ao serviço do Império, então, não é uma vida em absoluto. Além disso, o Império criou este mundo que está cheio de vícios. Busque as origens de um vício longe o suficiente e quase sempre se descobrirá que isso é verdade. Permita-me sugerir, então, uma vida dedicada a combater as condições que causam tantos vícios. Isto poderia significar uma vida dedicada à sabotagem no local de trabalho, ensinando outros a jardinar, a luta contra o tédio, ajudando outros a lidar com conflitos interpessoais, destruindo um banco ou bancos ou toda moeda, combatendo a supremacia branca ou a misoginia. Todas estas são atividades significativas que lutam contra as condições que perpetuam o vício.

Sobre a vida Eu procuro na internet por “como se recuperar do vício”. O primeiro site me diz: “Você não se recupera de um vício parando de usar. Você se recupera criando uma nova vida onde é mais fácil não usar”. Concordo com este sentimento enfaticamente e continuo lendo para ver qual é a teoria deles para a derrubada do capital e estou muito desapontado. É verdade que um modo de vida completamente novo é necessário se você deseja permanecer sóbrio. É verdade que você provavelmente precisará de novos amigos e novos lugares e novas maneiras de ver as coisas. Também é verdade que qualquer pessoa que leve o vício a sério reconhecerá a necessidade de negar este mundo em que vivemos. Devemos criar as condições para vidas que valham a pena viver. Ir trabalhar em um emprego que você detesta durante 40 horas por semana não é compatível com este sentimento. Ser uma pessoa negra neste lugar chamado América não é compatível com este sentimento. Ser uma mulher neste mundo não é compatível com este sentimento. Prisões, fazendas do agronegócio, pontos turísticos, shopping centers e a existência da polícia não são compatíveis com este sentimento. Estes não permitem as condições de uma vida alegre. Em sua superfície, esta pode parecer uma proposta profundamente política, mas não se trata de política, mas sim de vida e para aqueles que querem viver a vida, e especialmente para aqueles que não a querem. As expectativas que este mundo nos impõe são muitas vezes demais para lidar com elas. O policiamento é demais para suportar. As formas aceitáveis de expressão nunca são suficientes. A falta de verdadeiros laços entre as criaturas é de partir o coração. Para onde quer que nos voltemos, nossos olhos vêem a devastação. Não é surpresa que tantos de nós precisemos de drogas ou álcool para sobreviver, a alternativa é muitas vezes debilitante. No entanto, continuamos. Comprometemo-nos com uma luta contra este mundo e com as formas que ele nos obriga a ter vícios. Começamos a construir algo novo. Rejeitamos o rótulo de viciado como apenas mais uma categoria de identidade que o império quer nos colocar a fim de nos subjugar ainda mais. Se formos entendidos como uma categoria, nos tornamos fáceis de explorar. Temos vícios, mas não somos viciados. Da mesma forma, rejeitamos o uso deste rótulo como algum tipo de incapacidade ou deficiência que necessita de piedade ou consideração como um defeito. O vício é uma parte da vida de todos. Não reivindicamos espaços seguros para aqueles que lutam contra o vício, não há lugar seguro neste mundo, assim como não há lugar livre do vício. O que nos une é um compromisso de lutar contra as estruturas de poder que exacerbam e causam tantos vícios, que não compartilhamos nenhuma categoria de identidade – compartilhamos apenas uma luta comum.

Uma visão Uma rede de espaços formada em torno do objetivo de criar um novo mundo e fazer uma ruptura com este. Simultaneamente, um compromisso de promover a sobriedade dentro destes espaços e apoiar aqueles que estão lutando contra os vícios. Espaços sóbrios, mas não formados com o propósito da sobriedade. A sobriedade não é nosso objetivo. Porque levamos o vício a sério, nosso objetivo é um novo mundo. Promover a sobriedade é simplesmente um veículo para alcançar e encorajar as pessoas que precisam de sentido e propósito. Nós temos um propósito. Nosso propósito leva a sério a guerra contra a adicção de uma forma que AA ou NA não leva. Devemos oferecê-la àqueles que vêem as mesmas coisas que nós fazemos. Deveríamos nos tornar visíveis. Deixar panfletos fora das clínicas de reabilitação, construir amizades com aqueles que são novos na sobriedade, ter encontros sóbrios em um espaço na cidade, construir nossos próprios espaços para pessoas que desejam ficar sóbrias e precisam de algum lugar para começar. Na medida do possível, construindo alternativas às que nos são oferecidas por este mundo. Queremos autonomia em nossa saúde, tanto quanto qualquer outro aspecto de nossas vidas. Isto significa autonomia em relação aos hospitais que não nos levam a sério, à polícia que só quer nos colocar na cadeia, e às clínicas de reabilitação que só querem nosso dinheiro. Isto significa coletar naloxona em caso de overdose, aprender a mediar conflitos entre amigos e como lidar com questões de saúde mental e criar espaços onde as pessoas possam ir para ficar sóbrias. Significa também coletar e distribuir seringas limpas para aqueles que não querem estar sóbrios. Nós não temos uma posição moral sobre sobriedade. Queremos alegria e liberdade para a pessoa viciada tanto quanto para a pessoa sóbria. Devemos também reconhecer que o vício não será erradicado. Mesmo entre aqueles considerados sóbrios, vemos vidas cheias de vícios. Vícios a Deus, café, cigarros, televisão; vícios ao dinheiro, ao poder, à inteligência e à beleza. Ainda somos viciados. Ainda teremos amigos que são viciados. Ainda teremos amigos que não podemos ajudar apesar de nosso mais profundo amor por eles e nossos mais profundos desejos de seu bem-estar. Isto é simplesmente uma parte deste mundo, e muito provavelmente fará parte do próximo. Procuramos livrar nossas vidas dos sistemas que empurram tantos para o vício, mas isto não significa que o vício vá embora. Devemos fazer nosso melhor para ajudar aqueles que são viciados e levar a sério os fatores que empurram as pessoas para o vício, mas isto não vem de um lugar de caridade. Não podemos ajudar a todos, somos igualmente desamparados. Mas também somos igualmente potentes. Buscamos uma mudança na cultura, não qualquer tipo de conversão evangélica. Nossos passados são lugares de onde construir, mas não são a coisa que nos une. O que nos une é a visão do mundo em que queremos viver. O sonho que queremos ver como realidade. O sonho é o único significado. Estamos procurando por aqueles que querem nos encontrar.