Se há algo que define, em escala global, a subjetividade dos que estão em isolamento, esse algo é o medo. Principalmente em lugares, como o Brasil, em que as ações propriamente de saúde são precárias, o medo no isolamento é um medo duplo de morrer e de ver dissolverem-se as comunidades. Mas também a ansiedade do mundo hiper-presente do neoliberalismo, subsumido na forma do trabalho eterno. José Gil identificou um afeto de medo como a dimensão subjetiva mais fundamental da experiência da pandemia: “Não é o simples medo da morte, é a angústia da morte absurda, imprevista, brutal e sem razão, violenta e injusta. Rebenta com o sentido e quebra o nexo do mundo.” (https://www.publico.pt/2020/03/15/sociedade/ensaio/medo-1907861) Para os que estão em isolamento, os mecanismos que incidem fortemente para produzir um afeto reativo de ansiedade são aqueles associados à tele-presença e à obrigação de comunicabilidade. Paul Virilio (1994) teorizava a tele-presença como a presença imediata de diferentes espaços – da vida doméstica, da educação, do trabalho, do lazer – uns aos outros. Parte importante da racionalidade neoliberal, na “comunidade pandêmica” a telepresença se centraliza: “Na comunidade pandêmica, a vida social, a vida laboral, a vida escolar e a vida política, todas se contraem na vida doméstica antes de explodirem na vida em rede. Tudo o que tinha conseguido escapar fugitivamente à captura digital de redes, lamentavelmente, submete-se e conecta-se.” (Nil Mata Reyes; https://coletivoponte.noblogs.org/post/2020/04/10/a-comunidade-pandemica-nil-mata-reyes/). A tele-presença generalizada generaliza a vulnerabilidade ao olhar do Outro. Todos os espaços que tinham conseguido escapar à captura dos desejos pelo universo do trabalho agora se submetem e conecta-se. Também é característica da racionalidade neoliberal a obrigação de comunicabilidade. Bifo (2009) já havia demonstrado isso: as pessoas são compelidas a se comunicar, ou ao menos a estarem comunicáveis e “em rede” no sistema neoliberal. Entretanto, essa obrigação restringe a comunicação a “canais autorizados”, vias sistematicamente mediadas de informação: o WhatsApp da firma, a performance nas redes sociais, de maneira que, mesmo fora do campo do trabalho, nenhuma via é comunicação em sentido estrito (de troca). No isolamento social, a ameaça ao incomunicável é a destruição de todas as conexões sociais. Para manter minhas conexões com minha comunidade, corro o risco de estar comunicável com o patrão. Assim, o assalto final do mundo do trabalho aos aspectos da vida livre ameaçam, na pandemia, uma situação paradoxal: não me é permitida a solidão (Barthes: “Acídia (moderna): quando já não se pode investir nos outros, no Viver-com-alguns- outros, sem poder, entretanto, investir na solidão → O dejeto de tudo, sem nem ao menos um lugar para esse dejeto: o dejeto sem lata de lixo”), nem a comunhão. O próprio isolamento social apresenta consequências fundamentais para a ansiedade. A neurociência social têm mostrado que o isolamento social produz efeitos transitórios ou crônicos (MASI et al., 2011; SHA’KED; ROKACH, 2017). Os efeitos crônicos estão associados a depressão e suicídio, maiores taxas de alcoolismo, e baixa qualidade de sono, todos importantes fatores de risco para transtornos mentais (CACIOPPO; HAWKLEY, 2003; HAWKLEY; CACIOPPO, 2003). A solidão produz ainda diversos efeitos psicofisiológicos, cardiovasculares, imunes, e endócrinos, incluindo níveis mais altos de atividade autonômica, piores indicadores de imunovigilância, e níveis mais altos de hormônios do eixo neurovegetativo (UCHINO; CACIOPPO; KIECOLT-GLASER, 1996). Claro, nenhum desses efeitos foi produzido magicamente pelo vírus. A pandemia só agudizou efeitos biopolíticos que já estavam na ordem do dia da racionalidade neoliberal. O isolamento e a alienação do Outro já estavam no cardápio: qual é a forma ontológica da racionalidade neoliberal senão esse sujeito monádico, empreendedor de si mesmo, em competição com todos os outros sujeitos? Reforçado por mecanismos de administração de desempenho, constantemente correndo sem sair do lugar, buscando alcançar metas de desempenho irreais e que requerem sobre-trabalho para vencer na vida. A internalização subjetiva desses mecanismos leva à auto-vigilância e à associação do self com métricas de qualidade. “O neoliberalismo, antes de ser uma ideologia ou uma política econômica, é em primeiro lugar e fundamentalmente uma racionalidade e, como tal, tende a estruturar e organizar não apenas a ação dos governantes, mas até a própria conduta dos governados. A racionalidade neoliberal tem como característica principal a generalização da concorrência como norma de conduta e da empresa como modelo de subjetivação” (DARDOT; LAVAL, 2016). É sobre esse sujeito, agora atomizado, que o distanciamento social irá incidir, ameaçando dissolver o que resta de comunidade.