Notas sobre Desenvolvimento Científico – 02

A abiogênese[1] do conhecimento

Nosso sistema educacional se fundamenta sobre um elitismo que tende a fortalecer a posição de mando das classes dominantes. Dentro desse sistema elitista, a ciência e tecnologia aparecerão como instrumentos a serem manipulados por essas classes em proveito do fortalecimento do seu sistema. - Leite Lopes, em “Einstein”, 1979.

A natureza é algo perceptível, mensurável, quantificável e previsível[2]. É justamente a partir da percepção de um evento, da formulação de hipóteses, de testes e conclusões, que nasce o conhecimento científico, e quem o faz, o cientista. Pensemos então: o que leva o cientista a perceber esses eventos? Imaginamos que é um sentimento fábulo de curiosidade, uma ânsia pela “busca da verdade”, uma contemplação artística do “belo natural”. São visões bastante poéticas para diretriz de um cientista, que nasce da natureza do ser humano de compreender a natureza da natureza, um instinto, algo objetivo (e se considerarmos a subjetividade de nossos sentimentos como aquilo que nos torna “humanos”, o conhecimento nasce por um fator “não vivo”). Agora, pensemos posterior ao nascimento desse conhecimento, o que fazer com ele? É com essa pergunta que cria-se o conceito de tecnologia. Técnicas, ferramentas, meios criados para facilitar as atividades humanas.

É uma relação de reciprocidade e um processo contínuo. Conhecendo as propriedades de pedras lascadas, criaram-se ferramentas de semeio, que fez se conhecer o comportamento de plantas, que criou ferramentas para a irrigação e colheita, que se conheceram as condições climáticas, que se criaram construções de moradia, e nesses consecutivos que’s, somos o que somos hoje. Essa consecução de conhecimentos e tecnologias, assim como qualquer consecução de eventos, é chamado de desenvolvimento, no nosso caso, científico. É com base nessa definição de um desenvolvimento científico metrificado, certeiro, sempre em consecução, que muitos defendem que novos estudos científicos e criações de tecnologias são naturais, constantes, no sentido de que é um caráter inato, neutro do desenvolvimento.

Podemos pensar o desenvolver científico como neutro, pois: a escolha do tema, da linha de pesquisa, é somente para buscar conhecimento como um fim em si mesmo (neutralidade temática); o método científico não deve envolver, nem tem envolvido, valores sociais (neutralidade metodológica); a ciência descreve a realidade e não envolve juízos de valor, suas proposições são factuais (neutralidade factual) (OLIVEIRA, 2008)[3]. Trabalhemos então sobre essas proposições.

O economista soviético Strumilin[4] analisava o desenvolvimento científico ao afirmar “A ciência só se desenvolve pela necessidade de desenvolver as forças produtivas[5]”. Sabemos que nosso planeta é esférico há bastante tempo, Pitágoras já afirmava no século VI a.C. e Aristóteles e por volta de 330 a.C., então por que somente no final do século XV que Cristóvão Colombo provou por definitivo que a Terra não é plana? Foi para provar que a igreja católica era “burra” ou o império espanhol era entusiasta de descobertas científicas? Nenhum dos dois. A coroa espanhola necessitava desenvolver sua produção frente à coroa portuguesa, que impedida de chegar “às Índias” por terra, financiou as grandes navegações para dar a volta pelo oceano, segundo a “hipótese” do formato esférico do planeta. Eles só não esperavam encontrar um continente no meio do caminho.

Um exemplo citado pelo próprio Strumilin demonstra essa relação. O inventor russo Ivan Polzunov levara em 1763 a Catarina II seu mais novo projeto, um motor a vapor totalmente independente de água. A imperatriz o recompensou com 400 rublos pela nova descoberta, mas de nada a servia, pois a Rússia czarista já estava satisfeita com os motores movidos a água importados da Inglaterra. Somente após quase meio século, com a Inglaterra necessitada de desenvolver a indústria – até então manufatureira – que James Watt e Henry Maudsley redesenharam o motor de Polzunov e se concretizou a grande revolução industrial e o “pioneirismo” britânico.

Podemos visualizar essa afirmação em todo processo de revolução científica[6]: a geometria se desenvolveu pela necessidade de desenvolver a agricultura e construção, a astronomia só se desenvolveu pela necessidade de guiar as grandes navegações dos impérios, a termodinâmica surgiu da necessidade de complexificação das indústrias europeias, a física nuclear se desenvolveu pela necessidade de defesa das nações. Quando os eventuais “eurekas” ocorrem, são completamente descartados ou ficam inertes em estudos acadêmicos, sendo aplicados e desenvolvidos somente quando convém.

Agora retornemos o conceito de neutralidade científica exposto por Oliveira. Percebemos que todo trabalho científico atende a uma necessidade de desenvolvimento, portanto podemos afirmar que, a neutralidade factual é falsa, uma vez que a descrição da realidade não é concreta e submetida às modificações humanas, que estão sujeitas às condições materiais de um determinado local e período histórico. A neutralidade metodológica é falsa, pois, se se faz o esforço para excluir os valores sociais do método científico, quando se é conveniente, faz-se o esforço para que este valor seja incluído. A neutralidade temática é falsa uma vez que o desenvolvimento científico está em direta relação com as forças produtivas. Strumilin afirmou corretamente que desenvolvimento científico “atende a necessidade mais importante da economia nacional”.

Agora, com base que nos foi apresentado, retornemos a nossa discussão dos primeiros parágrafos desta seção. A definição de desenvolvimento científico exposta está incompleta, não é somente essa consecução de superação de novos estudos científicos e novas tecnologias que se se desenvolve cientificamente, é também, sustentado e baseado nos interesses do ser humano. Mas se o desenvolvimento científico está relacionado com os interesses do ser humano, isso nos leva a questionar quais interesses são esses, e, mais importante, a quem esses interesses atentem.

As Condições do Desenvolvimento

A integração da maior parte da América Latina no mercado econômico-cultural das nações capitalistas industriais conduz, inevitavelmente, portanto, ao agravamento da dependência: a ciência e a cultura transformam-se em produtos de luxo importados – por vezes produzidos internamente, mas apenas para uns poucos. – Leite Lopes, em “A Ciência e a Construção da Sociedade na América Latina”, 1983.

Antes de irmos direto ao ponto, cabe aqui uma exposição de termos que serão usados nos próximos parágrafos, e, para isso, façamos uma pequena, rasa e rápida observação de eventos históricos e conceitos. Marx e Engels (1846)[7] ao afirmarem que “a história de todas as sociedades que existiram até nossos dias tem sido a história da luta de classes” evidenciam a diferença e disputa entre classes dominantes e classes oprimidas.

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, [...], numa palavra, opressores e oprimidos, em constante oposição, têm vivido numa guerra ininterrupta, ora franca, ora disfarçada; uma guerra que terminou sempre, ou por uma transformação revolucionária, da sociedade inteira, ou pela destruição das duas classes em luta (MARX e ENGELS, 1846).

No atual sistema de organização social, fruto da gloriosa revolução burguesa, não extinguiu os antagonismos de classe, denomina-se a classe dominante como burguesia – detentora dos meios de produção – e a classe oprimida como proletariado – detentora de sua força de trabalho. O capitalismo, dada a sua assustadora capacidade de se autorrevolucionar constantemente – dispostos a tapar os buracos de suas próprias contradições – foi o responsável por dar as condições necessárias para grandes revoluções científicas e tecnológicas, mas ao mesmo tempo, graças a isso, ele também foi responsável por forjar a arma levará a sua própria derrocada, nós. Para conter as faíscas do fogo da luta de classes, o capitalismo lança mão, além da já notável repressão física, de sua “fase superior”, um processo de dependência entre os países.

Em contraste com a rápida industrialização dos países que foram centrais na Segunda Guerra Mundial, esse processo ocorreu de forma tardia na América Latina e outros países periféricos, focado no setor agropecuário e de extração de matérias primas. Para suprir essa necessidade industrial, esses países “abriram suas fronteiras” para a entrada de capital estrangeiro daqueles primeiros países, instalando-se empresas e indústrias “multinacionais” nesses setores faltantes, como eletrônicos, automotivos, entre outros, processo conhecido por alguns geógrafos como globalização. Isso levou a criação nos países uma relação de dependência econômica e de transferência de riquezas, que se faz necessário diferenciar as classes envolvidas em burguesia nacional, classe dominante interna dos países periféricos, e burguesia internacional, classe dominante interna dos países centrais. Demonstrado esses termos, discorramos sobre a realidade brasileira.

No Brasil atual, de economia capitalista dependente, em que a burguesia nacional confortável com o sistema de acumulação capitalista, demonstrado por Morais (2019)[8], não se fez por necessário – e nem de seu interesse – o desenvolvimento das forças produtivas, logo, não há desenvolvimento científico. Isso impõe a atuação dos nossos cientistas somente na publicação de artigos nas revistas internacionais – que sabemos que de internacionais não são nada – desenvolvendo as forças produtivas nos países centrais. Essa afirmação pode parecer extrema e trágica, porém, vamos fazer uma breve análise sobre o setor industrial brasileiro, tendo em vista ele como o pilar das forças produtivas de um país.

O processo de industrialização no Brasil, de acordo com Forjaz (1984)[9] se deu de forma tardia, acompanhado de um desenvolvimento econômico “periférico”. A concentração das grandes indústrias de transformação se localiza nos países de desenvolvimento central, enquanto as indústrias extrativistas ou de produção de commodities nos países periféricos, de modo que a relação de metrópole-colônia, apesar de extinta em aparência com os processos de independência, se mantém na essência por meio da dependência imposta a esses países. Com o foco no setor de serviços, a classe dominante brasileira, confortável com o rentismo agromineiro, a concentração fundiária e especulação de latifúndios, não se criou a necessidade de desenvolver o setor industrial, bem como é necessário pela Nova Divisão Internacional do Trabalho (Nova DIT) a manutenção da dependência aos países centrais, de modo a ocorrer a transferência de riquezas para estes (riquezas essas não somente fiscais, como também culturais, científicas e tecnológicas). O físico Washington Luiz Pacheco de Carvalho[10], afirma que:

[...] a indústria se habituou em importar as tecnologias, máquinas e peças, por ser um caminho mais rápido e fácil para o lucro, deixando o setor científico de lado, logo, como não há requisição de projetos de “ciência aplicada”, esses cientistas acabam por contribuir apenas publicando no exterior, desenvolvendo novas tecnologias/produtos nesses países centrais (CARVALHO, 2004).

Logo, vemos que com a Nova DIT, onde se inseriu nos países periféricos indústrias, institutos, laboratórios, empresas, oriundas dos países centrais, as condições necessárias para o desenvolvimento das forças produtivas estão ausentes, em síntese, “em numa sociedade cuja base produtiva for regida por um modelo agrário-exportador a classe dominante não necessita criar e incorporar, como as nações desenvolvidas, os agentes do conhecimento científico e tecnológico” (ARAÚJO, 1977)[11].

José Leite Lopes em sua obra “Ciência & Desenvolvimento” de 1964, faz um balanço sobre o desenvolvimento da ciência natural brasileira. Em um trecho, citando Goldemberg[12], afirma que:

[...] as patentes estrangeiras competem fortemente com o dos cientistas nacionais e tiram deles a motivação para pesquisas úteis na indústria. Nestas circunstâncias o sistema industrial não pressiona o sistema científico, a não ser quando é forçado ou encorajado a fazê-lo. (GOLDEMBERG, 1964).

Atualmente, vemos que essa exposição se mantém constante. Segundo a Pesquisa Industrial Mensal, do IBGE, quando comparado março de 2018 e março de 2019, a indústria brasileira recuou 6,1%, dentre os quais, a ala de equipamentos eletrônicos, informática e óticos caíram em 23,7%. José Martins[13] avalia esse recuo como “grave” e que “[...] se essa tendência de queda não for estancada imediatamente, o desemprego da força de trabalho continuará aumentando”.

Com base nesses fatores apresentados, junto a importação de peças sobressalentes e produtos das indústrias de transformação, fazem intensificar nossa dependência aos países centrais, o que deixa nossos cientistas principalmente na atuação docente ou na informalidade, exemplificando a afirmação de Araújo (1977) em que “a ciência e a tecnologia avançaram apenas em função de talentos isolados ou como decorrência de atividade docente”. Ou seja, aqui, as condições necessárias para o desenvolvimento científico não se fazem presente.

Notas de Rodapé

[1] Abiogênese foi uma hipótese que designava a origem da vida por um “princípio ativo” de seres não vivos.

[2] Os eventos “imprevisíveis”, são imprevisíveis pois os desconhecemos, mas a partir disso, usa-se o método científico e assim conseguimos prever os próximos. Foi o imprevisto da poliomielite no Brasil, que entre 1968 a 89 somaram 26 mil casos, que se fez o esforço para estudar esse evento imprevisível. Hoje, após mais de 30 anos, o país segue sem registrar mais nenhum caso. O evento se tornou “previsível”. Assim é a natureza, ela é previsível, nós só não sabemos como medir essa previsibilidade até termos a necessidade.

[3] OLIVEIRA, Marcos Barbosa de. Neutralidade da ciência, desencantamento do mundo e controle da natureza.

[4] STRUMILIN, Stanislav Gustavovich. A ciência e o desenvolvimento das forças produtivas – Traduzido por Diego Lopes.

[5] Forças Produtivas é um conceito formulado por Marx que define como a combinação da força de trabalho humana com os meios de produção.

[6] Ainda podem surgir dúvidas sobre essa premissa de Strumilin em algumas “revoluções” científicas, como as contribuições de Einstein para a física, que ela não surgiu de uma necessidade majoritariamente e sim da perspicaz natureza do físico. De fato, Einstein concebeu uma solução para o problema secular entre Newton e Huygens, sua percepção e busca da natureza da natureza são destacáveis. Mas lembremos que o desenvolvimento científico também envolve a criação de tecnologias, e, ora, a criação de tecnologias não surge da necessidade de desenvolver as forças produtivas das nações? Então, o desenvolvimento do cinema falado, da televisão, do GPS, etc., que tem como base teórica os conceitos de Einstein, surge dessa necessidade.

[7] MARX, Karl & ENGELS, Friedrich. Manifesto do Partido Comunista.

[8] MORAIS, Allefy Matheus de Carvalho. Educação, ciência e tecnologia para que projeto de nação?.

[9] FORJAZ, Maria Cecília Spina. Industrialização, estado e sociedade no Brasil (1930-1945).

[10] CARVALHO, Washington Luiz Pacheco de. Pesquisas em Ensino de Física.

[11] ARAUJO, Giselda Barroso Guedes de. Reflexões sobre a política tecnológica no Brasil.

[12] LOPES, José Leite. Ciência & Desenvolvimento.

[13] MARTINS, José Antônio. Produto Industrial: um corpo que cai.

- continua na parte três