As Virtudes das Profissões

Recebi sugestões para falar mais sobre dois casos que viralizaram este mês. O primeiro é o de uma acadêmica de medicina que fez piada menosprezando uma emergência médica com consequente morte; o segundo é a polêmica mais recente do influenciador Monark e suas opiniões sobre nazismo e liberdade de expressão.

Com as sugestões simultâneas desses dois casos, acredito que é uma excelente oportunidade para trazermos um debate que tem sido deixado de lado devido a um medo de doutrinação moral e imposição de valores – as virtudes profissionais, ou seja, as qualidades morais que uma pessoa deve ter para exercer certa atividade.

Este é um medo válido. Nós temos essas manchas em nossa história, especialmente durante o período da ditadura militar, quando cidadãos que discordavam do regime eram perseguidos e considerados à margem da moralidade e da lei.

Com o tempo, as liberdades individuais foram muito valorizadas e conversar sobre moralidade se tornou um tabu. Muito embora ela continue sendo discutida no cotidiano, frequentemente a discussão se resume a um lado desejando doutrinação moral e o outro rejeitando a moralidade como se ela fosse sinônima de imposição.

Porém, o vício de governos corruptos não pode nos impedir de fazer reflexões fundamentais para a cidadania.

Nesse texto, farei uma reflexão sobre quais virtudes são obrigatórias para o médico. Usarei o meu ofício como exemplo para, ao final, você poder se perguntar: quais as virtudes obrigatórias para a sua profissão?

Emergência Ética

Em um serviço de atendimento à urgência em Marechal Deodoro – AL, uma acadêmica de medicina estava de plantão à noite. Para quem não é da área da saúde, ocorre um revezamento comum em todos os plantões noturnos entre os profissionais e estudantes a partir de certo horário. Ela estava perto do seu descanso, quando uma idosa deu entrada bastante sintomática.

Foram diagnosticados infarto agudo do miocárdio (IAM), condição em que o coração não recebe sangue o suficiente e o músculo cardíaco começa a sofrer sem oxigênio, e edema agudo pulmonar (EAP), no qual a parte líquida do sangue começa a entrar nos alvéolos pulmonares, causando um distúrbio respiratório grave. Ambas as condições necessitam de acompanhamento e cuidados constantes.

Frustrada porque a demanda dessa senhora significava uma diminuição do seu período de repouso, a estudante publicou em suas redes sociais duas fotos.

Primeira imagem diz: faltando dez minutos para a minha hora de dormir, chega uma mulher infartando e com edema agudo de pulmão. Agora já passou uma hora e meia da minha hora de dormir, to puta. Segunda imagem diz: atualizações, a mulher morreu e eu não dormi

Essas capturas de tela viralizaram junto com a indignação em relação à insensibilidade. Seu estágio no serviço foi imediatamente suspenso e sua faculdade no momento avalia qual será a punição mais adequada, podendo chegar à expulsão.

Mas afinal, por que é que ficamos tão chocados com este caso? Veja bem, nós não temos informações sobre como foi o atendimento. Até onde sabemos, ela pode ter tratado a paciente com toda a competência enquanto estava lá. Além disso, ela estava na condição de estudante, ou seja, apesar de possuir certas responsabilidades, não tem o poder de agência e decisão sobre o caso. Ela ajuda e aprende, mas no geral não é ela a pessoa quem vai fazer a diferença no tratamento, é o seu médico preceptor.

O que estou querendo dizer é: não temos referência de sua competência. Ela pode ter sido extremamente técnica, agido de imediato e feito o possível ao seu alcance como estudante para ajudar a tratar a senhora, utilizando as evidências mais atualizadas sobre IAM e EAP.

Porém, por algum motivo, mesmo supondo que a estudante tenha acertado em todas as condutas que a paciente exigia, ainda assim não parece ser o suficiente para redimir suas publicações. Continuamos achando errado e não nos sentimos confortáveis com o que ela postou. Por que?

Além das infrações éticas óbvias (como quebrar o sigilo e divulgar o nome da paciente com seus dados clínicos em rede social) que já foram devidamente apontadas e criticadas, temos que falar sobre este porquê e como ele está presente no nosso cotidiano. Ele tem a ver com o télos, palavra grega utilizada por um dos maiores filósofos da humanidade para chegar no que é de fato justo.

A Justiça é Teleológica

Busto em homenagem a Aristóteles

Digamos que você seja responsável por cuidar de duas quadras poliesportivas em um condomínio. Há uma em condições bem piores que outra, com linhas apagadas e estruturas enferrujadas. Na quadra melhor, há quatro moradores que estão mal jogando, só passando a bola enquanto conversam. De repente, chegam jogadores da base do melhor time da cidade, com uniformes personalizados e equipamentos oficiais para jogar. Um deles é morador e tem o direito de usar com seus convidados. Você os enviaria para a quadra pior para não retirar os outros moradores, que chegaram primeiro?

O bom senso nos diz que não, afinal os jogadores iriam fazer muito mais bom uso da quadra do que os outros moradores, que estavam somente passando o tempo. Porque, no final das contas, o propósito da quadra é praticar esportes nela, logo eles têm o direito de usá-la.

Este é o pensamento teleológico, cunhado por Aristóteles há cerca de 2400 anos. Télos é uma palavra grega que significa propósito, finalidade ou objetivo, importante para definir o que é justo tal qual no exemplo acima. Ele baseia-se em dois princípios centrais:

  1. O que é justo depende do télos: para saber se alguém tem direito a algo, você precisa saber para que serve este algo. No caso da quadra, é praticar esportes.
  2. O télos depende da virtude: para entender qual é o télos de algo, é necessário entender quais virtudes este algo precisa honrar. No caso da quadra, ela precisa recompensar os que melhor desempenham os esportes.

Esse raciocínio era mais comum no mundo antigo. Hoje, nos rendemos ao pensamento utilitarista para resolver conflitos menores, que frequentemente acaba chegando em conclusão similar. Neste caso, um utilitarista pensaria que o correto é entregar a quadra para os jogadores porque a felicidade seria maior para a maioria das pessoas. Afinal, estão em maior número, produziriam um show maior para quem assistisse e o tempo de treino seria mais útil nas vidas deles que pretendem ser profissionais.

Aristóteles discordaria completamente dessa justificativa. Nada tem a ver com felicidade ou com utilidade. O que importa é que não faz sentido você destinar a quadra a pessoas que jogam mal se o esporte deve recompensar aqueles que jogam melhor, assim como a quadra. O item 2 é tão importante quanto o 1. Não só é necessário praticar, mas se praticar bem. Os jogadores teriam o direito de usar a melhor quadra simplesmente porque são melhores no esporte.

Mesmo sendo mais comum antigamente, nós continuamos usando o pensamento teleológico no cotidiano para encontrar justiça nas virtudes que queremos ver recompensadas. Temos como exemplo a derrota do Brasil para a Itália nas quartas de final da Copa do Mundo de 1982. Todos que viram o jogo ao vivo relatam que o sentimento era de completa injustiça. Por que? Porque sentiam que o Brasil era um time melhor, logo merecia ser recompensado com a vitória. É o télos do futebol.

Saindo dos esportes, podemos mencionar o caso de um grupo de investidores de NFTs que ganharam uma obra original de Bansky em um leilão em cima de apreciadores do artista e colecionadores. Justamente por possuir um NFT que direcionava para a versão digital da obra, sentiram-se no direito de queimar a obra verdadeira, acreditando erroneamente que só restaria sua “eterna” versão digital, logo ela se valorizaria.

Obra de Bansky sendo queimada

Por que, além da estupidez ululante, sentimos que foi injusto uma obra importante cair nas mãos de pessoas tão desconexas da realidade ao invés de especialistas? Por causa do télos da arte, que é ser apreciada, admirada e fazer refletir, ao invés de servir como instrumento de especulação financeira barata. O leilão não recompensou as virtudes que devem dar o direito de possuir peças inestimáveis.

Qual é o Télos da Medicina?

Vultos de médicos e médicas

Como mostrei antes, para acharmos o télos temos que primeiro nos perguntar quais virtudes a profissão médica deve recompensar.

Essa é uma pergunta complexa que poderia levar a livros inteiros (e levou), mas podemos resumir em seis virtudes mais relevantes, apontadas por Tom Beauchamp e James Childress no livro Princípios da Ética Biomédica. Destas seis, uma delas é a principal (que inclusive tornou-se por si só uma corrente ética) e as outras cinco a apoiam e promovem.

  1. Cuidado: Sem sombra de dúvidas a principal virtude dentro da área da saúde. É a mais fundamental nas relações médico-pacientes, norteando não somente quais ações devem ser tomadas, mas como e quando devem ser tomadas. Essa virtude (ou família de virtudes) se refere não só à capacidade de compromisso emocional, mas também a uma disposição de agir em prol de pessoas as quais o sujeito tem esse compromisso, o que define a prática médica em sua mais objetiva essência;
  2. Compaixão: Seria como um prólogo do cuidado. Ela combina uma atitude ativa de consideração pelo bem-estar de uma pessoa, misturando sentimentos de simpatia, ternura, misericórdia e desconforto com o sofrimento de outro ser humano;
  3. Discernimento: É a capacidade para fazer julgamentos certeiros e tomar decisões sem se deixar levar por considerações externas, como medo, apegos pessoais e outros. À primeira vista parece ser antônima à virtude do cuidado, pois exige um grau de ponderação imparcial em relação a sentimentos, mas um médico com essa virtude pode diferenciar, por exemplo, quando um paciente precisa de conforto ou privacidade após uma má notícia;
  4. Confiabilidade: É a fé no caráter moral e competência de outra pessoa. O médico com essa virtude merece a confiança do paciente porque ele terá sua conduta decidida pelos motivos certos, com os sentimentos certos e de acordo com as normas morais adequadas. Ter uma cultura de confiabilidade é o mais importante dentro de uma organização de saúde porque lida com pessoas em estado de vulnerabilidade, que são obrigadas a se colocarem nas mãos dos profissionais de saúde;
  5. Integridade: De maneira geral, significa ser objetivo, imparcial e fiel às normas morais. Uma pessoa íntegra possui duas camadas – a primeira, um caráter moral bem orientado; a segunda, uma fidelidade para com as regras morais que segue, as defendendo quando necessário. Um médico íntegro, como podem perceber, é o pressuposto para ser confiável;
  6. Consciência: A consciência enquanto virtude difere-se da sua definição enquanto função mental na psicopatologia. Uma pessoa consciente sente-se motivada a fazer o certo “porque é o certo”. Ela utilizou a diligência devida para determinar o que é o certo e demonstra esforço considerável para realizar esse desejo. Tivemos vários exemplos dessa virtude durante a pandemia, com médicos sendo demitidos e perseguidos porque se recusaram a prescrever tratamentos ineficazes para a covid-19.

Podemos então ter a compreensão de que um médico virtuoso é aquele que tem em todo paciente um compromisso emocional e disposição de cuidar, trazendo consigo todas essas características morais. Essas são, em suma, o que a atividade médica deve recompensar e honrar. Logo, concluímos que o télos da medicina é cuidar.

Quando retornamos ao caso em questão, percebemos que à estudante faltaram todas essas virtudes. Não foi compassiva, menosprezando a situação séria que a paciente estava; faltou-lhe discernimento em vários níveis, desde a de definir prioridades no seu estágio até a decisão de publicar em rede social; não demonstrou confiabilidade, tanto porque quebrou sigilo médico quanto porque revelou não ser merecedora ao fazer o que fez; estava paralela ao que seria uma atitude consciente, portanto também à integralidade...

Respondendo à pergunta do início, é por isso que, mesmo que ela tenha sido competente em relação ao manejo e técnica dos distúrbios médicos, a atitude dela continua incomodando muito. Ela não estava de acordo com o télos da medicina, atitude esperada mesmo na época de estudante.

Quanto à sua punição, isso a sua instituição que precisa ponderar e decidir. Eles sabem o curso que oferecem, o peso que a ética tem em sua formação e na grade de ensino com a qual trabalham. Mais do que isso, conhecem a estudante e sabem definir se isso foi um desvio pontual ou se ela de fato tem um caráter moral incompatível com o que se espera de um médico.

Qual é o Télos de um Podcast?

Rogério Skylab em entrevista

Não vou me alongar sobre o caso amplamente infame do influenciador Monark, que este mês defendeu o “direito” do Brasil permitir um partido neonazista, em nome da liberdade de expressão. Ele já recebeu inúmeras refutações da sua concepção pueril de liberdade, inclusive uma dada por mim.

Porém, no meio da turbulência, uma notícia me chamou a atenção. Era a entrevista no Flow Podcast de Rogério Skylab, artista brasileiro, na qual ele discutia com os apresentadores sobre a responsabilidade de um podcaster, há dois anos. A notícia pode ser lida clicando aqui.

Skylab: Não é um botequim porque tem uma multidão ouvindo lá fora, cara. Isso aqui, querendo ou não, você sendo formado ou não, isso aqui é um programa jornalístico, porra. A forma do programa é de conversa livre, ok, não tem problema, mas não deixa de ser um programa jornalístico. Monark: Precisa ser? A gente pode ser só dois moleques idiotas conversando. Igor: Eu sou meio idiota, na real. Skylab: Foda-se. É um programa jornalístico, tem uma multidão vendo. Monark: Tem uma multidão vendo o BBB também, o BBB é um programa jornalístico? Skylab: Não é uma conversa de botequim, tem uma multidão vendo. Então tudo o que se fala aqui, tem uma responsabilidade, sacou cara?

Isso me chamou muito a atenção porque o que eles estão discutindo em outros termos é o télos de um podcast, quais virtudes ele deve recompensar. E o que é mais interessante: Skylab aparenta crer que o programa poderia sim ter sido criado com essa ideia de conversa informal de bar, mas que ele mudou o seu caráter e propósito no momento em que fez sucesso e ganhou a tal multidão. Isso faz sentido?

Na minha opinião, Skylab está correto. Ora, um apresentador de podcast nada mais é do que um influenciador. E acredito que seja de senso comum que alguém que influencia milhões de pessoas necessita ser virtuoso. Quanto maior o poder de influência, maior é nosso padrão de virtudes esperadas. É o motivo da frustração pessoal que sentimos com chefes, celebridades, políticos e pessoas de sucesso no geral quando mostram vícios de caráter que, às vezes, nem são tão grandes (embora com frequência sejam).

Essa é a mesma frustração que sentimos com a estudante quando ela não foi virtuosa. É natural, temos expectativas correspondentes ao nível de poder. Os apresentadores não pareceram ter essa visão durante a conversa. E o mais irônico foi que Monark cita o BBB, programa em que votamos quem é mais virtuoso dentre os participantes para ser merecedor de uma quantia milionária de dinheiro e fama. Dois anos depois, o público votaria para ele sair.

Qual é o seu télos?

Diversas representações de profissões

Por fim, gostaria de terminar esse texto com um convite a uma reflexão. Qual é o télos da sua profissão? Que virtudes ela deve honrar e recompensar?

Alguns leitores que cursam medicina ou são médicos vão se identificar bastante com o que escrevi. Outros trabalham em áreas completamente diferentes que podem compartilhar algumas virtudes, mas priorizar outras bem diferentes.

Acredito que se todos nós fizermos essa reflexão, não só iremos nos realizar caso haja a percepção de estar alinhado moralmente ao télos, como também avançar no desenvolvimento moral. Falando por mim, ao estudar para falar sobre esse tema, tive muitas lembranças e revi muitas atitudes. Eu aprendi e cresci bastante do ponto de vista moral.

Como mencionado anteriormente, essas reflexões são fundamentais para a cidadania. Falando da medicina, estávamos a uma pandemia de distância de expor toda a falta de caráter que passou por nossas universidades. Caso lidássemos de maneira séria e sóbria com os valores morais e virtudes obrigatórias, não teríamos visto esse show de horrores conduzido inclusive pelos conselhos médicos.

Por Rafael Marinho Normande

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