O Parque de Diversão do Oscar

Eu boicotei o Oscar 2022. Não porque discordo dos vencedores ou por suas polêmicas além da cerimônia, mas porque gosto de cinema.

The Oscars

Quando comecei a me interessar mais seriamente por cinema, em 2012, assisti o Oscar 2013 porque havia visto a esmagadora maioria dos indicados. Me diverti bastante e vi todas as premiações sendo distribuídas a tantos filmes que haviam me marcado, incluindo Django Livre, um dos meus filmes favoritos.

Hoje, quase 10 anos depois, tudo está diferente. Tivemos o Oscar mais previsível da história em questão de vencedores, 8 categorias cortadas da transmissão ao vivo, censuras e cortes a discursos, vergonha alheia generalizada conduzida pelas apresentadoras e duas novas premiações escolhidas por votos no Twitter. O que aconteceu?

Longe de um texto sobre a história do Oscar e os bastidores da academia, este é o ponto de vista pessoal de um cinéfilo que não vê mais celebração do cinema ali – somente um apelo barato por migalhas que a Disney venha a soltar no caso de indicações.

Mas estou me adiantando. É preciso explicar antes como o Oscar chegou nesse ponto.

Oscar Apaixonado

Vencedores de estatuetas por "Shakespare Apaixonado" em 1999

Muitos críticos, como Pablo Villaça, Tiago Belotti e Waldemar Dalenogare já expuseram os vieses que sempre existiram nas premiações, muitas vezes não sendo alinhada com o que seria justo (no significado aristotélico da palavra). Também nos contam sobre como isso mudou para uma versão ainda mais agressiva do jogo sujo.

Harvey Weinstein, o homem sem barba ao lado de Gwyneth Paltrow na foto, foi o grande responsável por isso. Ele coordenou a campanha mais agressiva do Oscar até aquele momento, mantendo diversas linhas telefônicas abertas para conversar com todos os votantes da cerimônia divulgando seu filme, Shakespeare Apaixonado (1998).

Não só isso, também promoveu jantares, festas e eventos nos quais Paltrow e ele sempre estavam presentes, conversavam sobre o filme e contavam histórias de bastidores. Os filmes concorrentes, especialmente o favorito O Resgate do Soldado Ryan, nada faziam em comparação. Acreditavam que a categoria de sua substância venceria.

Estavam errados. Não somente Weinstein levou o Oscar de Melhor Filme, como Paltrow também o de Melhor Atriz em cima da favorita Fernanda Montenegro. Essa campanha mudou a maneira como os estúdios encaram a campanha do Oscar e também como os votantes se comportam em seu exercício. O Oscar perdeu o caráter de qualidade e ganhou um de popularidade, com diversas injustiças cometidas todos os anos.

Isso nos traz a 2020.

Guerra ao Terror

Gráfico da audiência do Oscar decaindo sendo interpretado por Waldemar Dalenogare

Este gráfico, retirado de um vídeo do Dalenogare, mostra a queda de audiência que o Oscar vinha tendo antes mesmo da pandemia começar. Não tenho conhecimento ou pretensão de entender a causa desse desinteresse gradual do público, o que realmente interessa nele é a forma como os responsáveis pela cerimônia o interpretaram.

Tentaram demais repetir o carisma da edição apresentada por Ellen DeGeneres, sem sucesso. Quando Chris Rock ainda tinha a bochecha mais lisa que bumbum de neném, teve sua apresentação manchada pela campanha Oscar So White, que denunciava a falta de diversidade naquela edição. Chris, sendo um homem negro, não fez mais do que algumas piadas soltas, fingindo que a situação não ocorria. Seu carisma não pôde segurar a decepção.

Oscar decidiu então remover totalmente o conceito de apresentador, deixando só os anúncios para as categorias conduzindo o público, tendo a promessa de uma premiação mais curta. Não só não se cumpriu, como os números continuaram em queda.

Ao ter os piores números de sua história em 2021, o Oscar procedeu a fazer as piores mudanças da sua história para o ano seguinte.

Beleza Americana

Imagem representativa do Universo Cinematográfico da Marvel (MCU)

Antes de explicar as mudanças, um pouco de contexto: nas últimas duas décadas a Disney vem caminhando em direção ao monopólio do cinema.

Uma das polêmicas recentes da indústria foi a fala do mitológico diretor Martin Scorsese sobre isso:

Eu não assisto a eles [filmes da Marvel]. Eu tentei, sabe? Mas aquilo não é cinema. Honestamente, o melhor que posso pensar deles, mesmo sendo bem-feitos como são, com atores fazendo o melhor que podem dentro das circunstâncias, são parques de diversões. Não é o cinema de seres humanos tentando passar experiências emocionais, psicológicas a outros seres humanos.

Após a forte resposta tanto na mídia quanto de outros profissionais da sétima arte, Scorsese decidiu explicar melhor sua posição aqui, recebendo o apoio de gigantes como Francis Ford Coppola:

Quando Martin diz que a Marvel não faz cinema, ele está certo porque nós esperamos aprender algo com o cinema, algum tipo de conhecimento, iluminação, inspiração. Eu não conheço ninguém que tire algo disso ao ver o mesmo tipo de filme várias e várias vezes seguidas. Martin pegou leve ao dizer que os filmes da Marvel não são cinema, pois eu os acho desprezíveis.

E Dennis Villeneuve:

Há muitos filmes da Marvel que não são mais do que um copia e cola de outros.

De início torci o nariz, mas hoje concordo plenamente com eles. Claro, há exceções ao que vou dizer agora, mas via de regra os filmes de super-herói parecem não ter alma. São obras montadas num modelo fordista, preenchendo uma lista com itens obrigatórios do gênero para fazer sucesso, tal qual um filme produzido por um software de inteligência artificial que aprendeu superficialmente o que os humanos gostam de ver e repete a mesma forma milhares de vezes.

E o que os humanos gostam de ver? Personagens entrando e saindo de tela; heróis triunfando; referências a outras obras para se sentir recompensado por ter visto; piadas com apelidos (sério, chegou no ponto do humor de Vingadores: Guerra Infinita ser 100% apelidos descontraídos entre os personagens); e consequências que são radicais à primeira vista para chocar, mas que em última análise não mudam nada (ou desfazem alguma mudança importante anterior), porque os fãs não gostam de mudanças.

Todo esse comportamento é personalizado por Tom Holland, principal defensor dos filmes de super-herói, que chegou a sugerir que Scorsese é invejoso por nunca ter feito um filme da Marvel (sim!!!!!!) e que não sabe do que fala. Pediu para ele conversar com pessoas que fizeram tanto “filmes de Oscar” (como Tom os põe, similar ao seu avô se referindo a jogos eletrônicos como “jogo de boneco”) quanto filmes da Marvel para mudar de opinião (muito embora vários profissionais, como Edgar Wright e Benedict Cumberbatch, já expressaram descontentamento com essa conduta do estúdio).

Além disso, Tom chegou a protagonizar o momento mais constrangedor de sua carreira (possivelmente, de qualquer pessoa que tenta se passar como verdadeiro entendedor de cinema), ao desconhecer em absoluto quem seria Pedro Almodóvar, lendário diretor espanhol. Assista e veja a inicial confusão seguida de uma perturbação visível de Jake Gyllenhaal aqui.

Esse é o tipo de gente com quem o fã se identifica. E é esse o tipo de gente que o Oscar tentou atrair para aumentar sua audiência.

12 Anos de Escravidão

Imagem divulgada pela academia com os líderes em votação do Oscars Fan Favorite

Agora, o Oscar tenta ser descolado. Tenta se enturmar de maneira também similar ao seu avô, desta vez quando coloca a aba do boné para trás, uma calça folgada e fala coisas intangíveis que só com certo tempo você percebe que é uma tentativa de usar gírias modernas. O objetivo é um só: mendigar por migalhas que a Disney solta de seu enorme sucesso financeiro.

Primeiro: os organizadores sabem que dificilmente a Marvel conseguirá indicações em suas categorias mais cobiçadas, no máximo terão seus efeitos visuais, design de produção ou cabelo/maquiagem/figurino reconhecidos. A solução então, é criar categorias nas quais quem vota não é a academia, e sim os fãs.

Temos então o Oscars Fan Favorite, categoria que colhe votos através do Twitter e premia o filme favorito do ano pelo público; e o Oscars Cheer Moment, que premia a cena que faz você gritar e torcer no cinema, comportamento que agora a Academia incentiva (não achei uma imagem dos finalistas dessa categoria para colocar no texto igual à outra, mas você pode acessar aqui se quiser saber quais eram).

Segundo: apresentadores de volta – dessa vez serão três, buscando dinamismo – para fazer piadas com apelidos e referências (!!!) e fazer performances de super-heróis entre as categorias.

Amy Schumer vestida de Homem-Aranha e pendurada por fios na noite do Oscar

Terceiro: a duração da premiação sempre foi um problema aos olhos dos organizadores. Como estavam acrescentando esse show de conteúdo, precisavam arranjar uma forma de encurtar com urgência. A solução foi cortar 8 categorias da transmissão ao vivo, afinal o seu novo público não se importa com coisas como melhor som (também uniram as categorias de mixagem e edição de som, é tudo igual no final né?) ou melhor montagem.

Quarto: obviamente os profissionais rebaixados à recém criada segunda divisão do Oscar se sentiriam desvalorizados e iriam protestar. Para evitar isso, seus discursos teriam duração limitada e seriam liberados com cuidado para cortar qualquer protesto ou crítica, já que não seriam transmitidos ao vivo.

E assim temos uma das cerimônias mais vergonhosas da história, se não for a maior, marcada por um compromisso submisso concreto ao seu Senhor. Já tivemos várias edições com momentos vergonhosos, mas a transmissão inteira?

Spotlight

Will Smith estapeando Chris Rock ao vivo

As apresentadoras foram, no melhor dos termos, insossas. Os vencedores foram os mais previsíveis da história, sem nenhuma surpresa além do prêmio de Melhor Roteiro Original, o que não melhorou o sentimento de quem acompanhava.

O filme que passou boa parte do tempo liderando as votações do Oscars Fan Favorite foi Cinderella, graças ao fã-clube de Camila Cabello, mas no final quem levou ambos os prêmios populares foi Zack Snyder com seu novo patch do filme Liga da Justiça, rival da Marvel sem um terço de seu apelo comercial.

A cerimônia acabou sendo MAIS longa do que o normal, cerca de meia hora. O rebaixamento de categorias gerou conflitos possivelmente duradouros com os sindicatos das categorias. A parte mais memorável da festa foi uma agressão física por um Will Smith bêbado (seguido por seu discurso hipócrita e vergonhoso após sua vitória, combinando com a noite), sendo banido da Academia por 10 anos após o ocorrido.

A audiência do Oscar subiu para 16,6 milhões nos EUA (3,76 de pontos percentuais), longe da meta de 25 milhões esperada. Você pode voltar ao gráfico que coloquei lá em cima e ver o desempenho pífio, mas também pode ver a excelente análise do Dalenogare sobre esses números.

Não só não conseguiriam atrair o público alvo, como conseguiram afastar sua audiência cativa, que já vinha decaindo aos poucos. E agora há a grande dúvida do que irá acontecer, mas o mais provável para mim é a manutenção de um formato parecido com que tivemos este ano.

Distante da arte, o Oscar agora é uma premiação sobre parques de diversões. Traga seu dinheiro, ande nos brinquedos, veja os bonecos lutando e esqueça tudo no dia seguinte.

Por Rafael Marinho Normande

#oscar #cinema #marvel