Os Limites do Esporte

Uma discussão que pode não parecer, mas é sobre ética: jogadores de League of Legends são atletas?

Palco de um campeonato de League of Legends, com vários jogadores em uma partida

Recentemente tive um debate com um amigo quando conversávamos sobre Ayrton Senna. Ao comentar sobre o impacto cultural que ele teve no esporte brasileiro, vi a testa de meu amigo franzindo em desaprovação, me corrigindo na sequência: “fórmula 1 não é esporte”.

Essa não foi a primeira vez que tive contato com esse ponto de vista (e talvez até você compartilhe desse pensamento), mas resolvi dar mais ouvidos dessa vez por curiosidade. Seus principais argumentos foram os seguintes:

  1. Dirigir não exige esforço físico. Com isso, descobri que ele também não considera xadrez um esporte, assim como o cenário competitivo de jogos eletrônicos, popularmente chamado de e-sports;
  2. O carro possui mais mérito pelo resultado. A tecnologia só avança a cada ano. Os carros estão cada vez mais eficientes, facilitando o controle e reduzindo o papel do piloto, tendo ele ajuda de várias pessoas com várias funções diferentes. “É uma disputa de engenheiros”, meu amigo afirma.

É estranho pensar nisso, mas a princípio estes são argumentos éticos. E como toda oportunidade é boa quando se é para discutir ética, resolvi escrever sobre esportes, arte e propriedade.

Começando com o primeiro ponto, uma pergunta: esforço físico realmente é necessário para o esporte?

O Télos do Esporte

Imagem com várias faixas coloridas e uma silhueta de uma pessoa em cada uma delas, praticando um esporte diferente

Se você não sabe (ou não se recorda) o que é télos, faço o convite a conferir de novo o meu texto sobre a ética aristotélica, ou pelo menos o trecho “A Justiça é Teleológica”. De maneira resumida, télos é o propósito, finalidade de algo que serve para julgar seus outros aspectos. Qual a finalidade de um esporte?

A resposta é competição. Por mais diferentes que sejam suas regras e o número de atletas envolvidos, o fator comum entre todos os esportes é o objetivo de triunfar em uma competição com outros atletas. Essas competições iniciaram exclusivamente valorizando o componente físico, honrando qualidades como força ou destreza nos tempos antigos. Isso acontecia porque a função do esporte era exibir poder militar sem entrar em guerra. Ter homens mais fortes, rápidos e ágeis que o rival servia como intimidação.

Com o tempo, fomos não só estendendo essas qualidades para o aspecto mental (ao ponto que força e destreza hoje são utilizados como sinônimos de resiliência e percepção), como também estendendo o conceito de competição para a mente. Isso não significa que praticar esporte não se trata mais de esforço físico, só que hoje inegavelmente reconhecemos valores além da fisicalidade para se vencer uma competição. Não basta você ser o mais forte; você também precisa ser focado, consciente, resiliente, inteligente.

Em outras palavras, o télos de todo esporte é a competição e ela deve honrar o mais preparado fisicamente e psicologicamente. Se você só se preparar em um aspecto, não só será mais difícil de você ganhar, será injusto você ganhar.

Uma vez que reconhecemos que os esportes tradicionais envolvem tanto qualidades físicas quanto mentais, porém com um peso maior nas físicas, não é um salto distante entender que existem esportes com um peso maior nas mentais. É o caso do xadrez, que exige preparação física e já é senso comum no cenário competitivo há décadas, a despeito do desconhecimento da população geral sobre isso.

Histórias de Mente e Corpo

Spassky e Fischer em uma partida do campeonato mundial de xadrez

O lendário Bobby Fischer, enxadrista americano, deu uma entrevista no programa de Dick Cavett em 1971, antes de enfrentar o soviético Boris Spassky pelo título mundial em 1972. Ele comenta sobre o papel do exercício físico neste trecho aqui da entrevista. Vou traduzir abaixo:

Cavett: Quando as pessoas conhecem você, elas ficam surpresas. Por alguma razão elas esperam uma pessoa pequena, frágil com óculos grossos no rosto e na verdade elas ficam impressionadas com a largura de seus ombros, você parece um atleta, um nadador, ou algo assim. Você é bom nessas coisas também? Fischer: Bom, não me dediquei muito aos esportes, mas gosto de nadar e de tênis. No geral, faço essas coisas para ficar em forma para jogar xadrez. (plateia do programa ri, achando que é uma piada) Cavett: Isso soa engraçado. As pessoas riem dessa ideia de ficar em forma pra jogar xadrez, mas onde é que você realmente necessita de força? Fischer: Bom, você está lá sentado por cinco horas... Cavett: Como se desenvolve essa parte do seu corpo? (risadas) Fischer: (ri) Assim, você precisa ter uma postura boa, sua coluna e costas bem ajustadas, o sangue precisa fluir ao seu cérebro... a razão para os enxadristas pararem de jogar profissionalmente aos 40, 50 anos é porque quando o jogo se alonga muito, lá na quarta ou quinta hora eles perdem a concentração. Estão exaustos, sem energia.

Uma partida de alto nível no xadrez competitivo é também uma prova de resistência física, embora seu maior desafio seja mental. Vemos o oposto disso na maratona, esporte que envolve muito preparo mental, mas seu maior foco é ser uma prova de resistência física.

O automobilismo também exige muita aptidão física. Na corrida mais famosa de Ayrton Senna, Interlagos em 1991, ele liderava quando a caixa de câmbio do seu carro quebrou faltando 10 voltas para acabar a corrida, com Riccardo Patrese em segundo colocado 36s atrás.

Senna teve de terminar a corrida dirigindo somente com a sexta marcha. Através de um esforço heroico segurando e conduzindo o carro, ele conseguiu manter o primeiro lugar e vencer pela primeira vez uma corrida no Brasil. Sua exaustão nos braços e ombros era tamanha que ele não conseguia erguer o troféu direito, precisando segurá-lo na posição do volante pela maior parte da comemoração.

Senna levantando com muita dificuldade o troféu de primeiro colocado, em 1992

Esse tema também foi parar na justiça, nos EUA. Casey Martin era um golfista muito bom, porém sofria com uma doença rara que prejudicava sua circulação sanguínea e facilitava fraturas. Ele fez uma solicitação à PGA (Professional Golfers Association) para se deslocar com um carrinho de um buraco para o outro, a qual foi negada pela organização.

Martin então processou a PGA e foram tantos recursos que o caso foi parar na Suprema Corte americana. Para a PGA e muitos golfistas que prestaram depoimento, ter um carrinho era uma vantagem desonesta, porque o ato de andar fazia parte do desgaste físico do jogo. Para Martin, era um caso de equidade para os deficientes baseado na lei americana de inclusão.

O que eles realmente estavam discutindo era se o ato de andar fazia parte do télos do golfe ou não, se era essencial para um golfista ou não. Com grande maioria, a Corte decidiu por dar a vitória a Martin e ele pôde competir usando o auxílio de um carrinho.

Casey Martin em um carrinho de golfe ao lado de Tiger Woods que seguia a pé

Concluímos então que esportes exigem tanto esforço físico quanto mental, embora a proporção entre os dois varie de esporte para esporte. Resta então o segundo argumento: o carro realmente é o maior responsável pelos resultados?

O Todo É Maior que a Soma das Partes

Equipe de cinema trabalhando no set, entre gravações

O tênis usado no atletismo influencia a performance. Assim como a chuteira no futebol, a raquete no tênis, o maiô, gorro e os óculos na natação. Ainda assim, é seguro dizer que, no automobilismo, a performance do atleta sofre muito mais com fatores externos a ele, podendo ser completamente inviabilizada.

Esse fato é levado à conclusão que meu amigo chegou. Não importa muito quem está atrás do volante, um motor superior sempre ganha. Para ser uma competição real, tinha que ser todos os pilotos com o mesmo carro!

O erro neste pensamento é pressupor que automobilismo é um esporte individual. Uma equipe competidora deve ser encarada como nós encaramos uma equipe de cinema. Temos várias pessoas diferentes, em funções radicalmente diferentes, se unindo para entregar uma única obra de arte. O fato do filme necessitar de designers de som, especialistas em efeitos visuais, montadores e figurinistas não torna o trabalho do ator “menos arte”, ou um diretor “menos artista” que um pintor que fez o quadro todo sozinho.

Da mesma forma, ter uma equipe de engenheiros, montadores, analistas e técnicos que se unem para montar um carro, não deveria diminuir a performance do piloto ou reduzir seu status de atleta. Além disso, há um conjunto de regras que devem ser obedecidas no desenho e construção dos carros, certas tecnologias que não podem ser incluídas. O piloto sob contrato é levado em consideração, o carro da temporada é feito pensando nas suas principais qualidades e defeitos, o que também influencia decisões durante a corrida.

Carro da Red Bull cercado por membros da equipe técnica

Portanto, não é o carro que traz resultado. É a equipe que planejou e construiu cuidadosamente aquele carro para ser usado por aquele piloto que traz. A vitória tem que ser vista como fruto de um esforço coletivo, dezenas de pessoas se unindo para produzir uma grande performance de um atleta. Colocar “todos os pilotos no mesmo carro” é igual dar a mesma câmera, set, figurino e efeitos sonoros pra todos os diretores buscando medir valor artístico.

Antes de terminar esse texto, senti a necessidade de comentar sobre e-sports. Qual o lugar deles nessa história toda? Eles, assim como o xadrez, são esportes?

O Problema da Propriedade

Patch notes de Defense of the Ancients 2

A resposta é não. E o motivo disso é que os jogos eletrônicos são propriedades intelectuais de empresas. Todas as decisões de balanceamento, mudança nas regras e o próprio acesso ao jogo são feitos para maximizar o lucro.

Não que ligas de esportes tradicionais não busquem o lucro, mas é um poder muito menor. A FIFA não pode te impedir de jogar futebol, nem te impedir de fazer certos movimentos ou exigir certas chuteiras e equipamentos para você jogar. Não existe expansão pro vôlei que adiciona novas posições e movimentos que trazem vantagens contra quem não tem.

Diferente do xadrez, que é patrimônio público, os jogos eletrônicos têm uma empresa por trás querendo dinheiro. O que acontece se eles fizerem mudanças que favorecem certo estilo de jogo em detrimento de outro? Como garantir que não há favorecimento para um dos lados? E quando acontecem bugs ou desconexões? Como fica o mercado se um dos seus competidores é considerado um esporte?

Por essa questão fundamental, isto é, que faz parte da essência dos jogos eletrônicos (ser propriedade de uma empresa) que eles não podem ser considerados esportes, por mais que tentem imitar as estruturas dos esportes e se vender como tal. Quando há uma transmissão do campeonato de Hearthstone no canal da Blizzard, ela é ao mesmo tempo a ESPN (emissora cobrindo o evento), NBA (a organização do evento) e o próprio basquete (dona do jogo, pode alterar como quiser). Controlar todas essas partes é muito poder.

Apesar dos esforços físicos e mentais similares a esportes nas performances dos jogadores, os e-sports continuam sendo somente jogos.

Por Rafael Marinho Normande

#filosofia #ética #esporte #esports