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🪦Reflexões sobre morrer no exterior e o trabalho que isso daria a nossas famílias

Vamos viajar em breve e a experiência de entrar num avião é sempre uma experiência pré-morte para mim, assim como quando viajo de carro, mas um pouco mais intenso.

Nos dias que antecedem uma viagem, começo a pensar que, se eu morrer, como minha família vai lidar com o fato de ter de viajar para outro país, obter autorização para arrombar a porta do apartamento e recuperar o dinheiro das contas bancárias, como vai se desfazer das nossas coisas, cancelar serviços, lidar com o cartório e outras burocracias francesas (Receita Federal, por exemplo), etc., tudo isto sem entender nem saber falar a língua do país.

Lidar com a burocracia Perder um ente querido no Brasil já é difícil, mas quando é no exterior e envolve burocracia em outra língua, deve ser um pesadelo. Para além de ter de tratar com agência funerária e de eventuais serviços funerários internacionais (se os restos mortais forem recuperados), tem ainda de tratar dos seguintes assuntos em ambos os países:

  • Notificação das autoridades locais, do consulado ou da embaixada e do empregador
  • Consultar advogado
  • Obter uma certidão de óbito
  • Organizar o repatriamento do corpo: os serviços funerários internacionais e as transferências de avião podem ser caros
  • Tratar da documentação
  • Notificar as instituições necessárias: bancos, companhias de seguros, autoridades fiscais, instituições do governo como previdência etc.
  • Tratar de questões jurídicas e imobiliárias
  • Avisar amigos estrangeiros: imagine a dificuldade de descobrir quem são se o seu telemóvel se perdeu ou foi bloqueado.
  • Cancelar assinaturas, serviços, etc.
  • Desfazer-se de bens móveis e talvez imóveis: uma dose surreal de burocracia e trabalheira

🏡Desfazer-se de bens móveis e imóveis

Imagine que, para se desfazer de um bem móvel, nossa família teria primeiro de descobrir como entrar no nosso apartamento (no nosso caso é alugado), obter autorização para entrar (como é que o proprietário do imóvel, ou o notário ou o juiz poderiam saber estando no exterior quem são os herdeiros legais sem um processo prévio no Brasil?).

🛋️ E vai doar? Ou vender? A que preço? Para quem e como? Como fazer o descarte de forma responsável, encontrar os locais certos para receber determinados objetos? Ou levar as coisas de volta para o Brasil? Se forem poucas coisas – livros, objetos pessoais, documentos, etc. – talvez seja necessário comprar malas e pagar uma taxa adicional por cada mala extra à companhia aérea. Se quiser levar móveis grandes, há a burocracia de descobrir como despachá-los por via marítima em contêineres, o que pode levar meses de viagem. Sem contar que é preciso desembaraçá-los quando chegarem a um porto no Brasil, e depois contratar um caminhão para levá-los até o destino final. Mas se tudo isso não puder ser feito rapidamente, talvez seja preciso desocupar o imóvel e colocar os móveis em um depósito. Ou continuar a pagar o aluguel (em euro) até resolver a situação.

Repatriar o corpo ou não: custos e possibilidades

⚰️ Não pagamos seguro para transportar nosso corpo para o Brasil se morrermos aqui, porque não me importo de ser enterrada na França e até tenho um epitáfio que só faz sentido se eu ficar em um cemitério francês, mas ninguém sabe, porque é um pouco mórbido falar disso. Mas se as nossas famílias quisessem levar a nossa versão falecida para o Brasil, isso custaria cerca de 30.000 euros por pessoa. Ou seja, inviável para eles.

É por isso que vemos pessoas fazer vaquinha para ajudar famílias no Brasil a trazer os restos mortais de familiares e amigos que morreram no estrangeiro, mas seria uma pena para as nossas famílias terem de passar por isso, uma vez que estamos conscientes deste tipo de problema em que ninguém pensa.

Provavelmente a minha família não ia se importar de não ter os meus restos mortais, (mal se preocupam com os meus restos vivos), mas a família do meu marido certamente iria querer repatriar os dele. Talvez levassem os meus juntamente com os dele, por respeito.

⚱️Porém ainda acho que o mais prático seria incinerar a nossa matéria física na França e levar as nossas cinzas numa urna no avião para o Brasil, mas isso é um assunto extremamente bizarro para abordar com os pais dele, que são muito sensíveis. E eu ainda não sei se gosto da ideia de ser incinerada.

Claro que, se o acidente for de avião, na melhor das hipóteses, vamos evaporar e não haverá qualquer despesa nesse sentido. Com o dinheiro da indenização mínima do seguro obrigatório pago pelas companhias aéreas, se ele for dado rapidamente às famílias, elas poderão contratar pessoas para os ajudar na França com a burocracia da recuperação dos nossos bens e do encerramento de todos os serviços que utilizamos.

🛪 No caso de morrermos num acidente de avião, menos mal, nossas famílias receberão uma indenização que, com base numa recente que vi, pode chegar a 300.000 reais sem processo (mas há sempre advogados que tentarão ir além do mínimo legal). Além disso, nosso nome seria imortalizado em sites de notícias. Se for em um ataque terrorista, o planeta inteiro iria rezar pela gente! (eu nunca teria isso de outra forma na minha vida de mera mortal insignificante)

Mas se for um acidente de carro, não há memoriais nem indenizações para a família, porque é algo muito banal. ⛐

💰 Dinheiro preso em carteiras digitais Mas o que acontece com os serviços digitais que assinamos e com as fontes de rendimento virtuais? No meu caso, tenho uma renda passiva que sempre pinga pouco a pouco no Paypal e minha família nunca vai saber que ela existe se eu não anotar num canto – mesmo que não seja muito para mim, convertendo em reais sempre poderia pagar umas comprinhas no mês. E imagine agora quem tem investimentos em criptomoedas? Como os herdeiros iriam recuperar esse dinheiro para que ele não se perca para sempre? Não é o meu caso, mas pense nas pessoas que têm créditos e dinheiro em outras carteiras virtuais, como aplicativos. Se não deixar instruções para os herdeiros, seria impossível recuperar. 💸

📄 Inventariando tudo É por isso que, sempre que vou viajar e penso que posso morrer, me cobro de fazer um inventário de tudo e deixá-lo escrito em algum lugar fácil de encontrar, ou mesmo enviar um documento às nossas famílias sobre o que fazer em cada caso, embora ache que elas não gostariam de pensar nisso.

Eu poderia até fazer um testamento no cartório aqui na França, o que facilitaria à minha família provar que tem o direito de reclamar as nossas coisas aqui e que pode fazer todos os procedimentos necessários, sem precisar de traduções juramentadas de testamento brasileiro. Pensando melhor, eu poderia registrar o mesmo testamento em ambos os países.

Até já baixei alguns modelos de inventário para preparar, mas ainda não fiz. Acabo sempre indo viajar com este peso na consciência. Sempre prometo que antes da próxima viagem farei isso, e no caso de hoje, eu ainda teria alguns dias para me preparar.

Talvez eu não esteja mais aqui dentro de alguns dias. Será o fim para mim, e o início de uma tortuosa batalha burocrática para as nossas famílias. Nesse caso, esse início de blog não receberá mais atualizações, mas por ser inútil e irrelevante não constará no meu inventário.

#morte #burocracia