Kroeber

#001992 – 10 de Novembro de 2024

Invisible Mountain é um dos meus álbuns favoritos. Mas, se pensar nisso, boa parte dos álbuns de Horseback estaria em qualquer lista da música que mais gosto. Este, em particular, consegue activar partes do que sou de forma imediata, terapêutica, misteriosa. Mexe com coisas diferentes, que não sabia poderem dançar juntas. O íntimo é profundo, os ecos do inconsciente atravessam distâncias transformadoras. É como se para a sombra se contaminar inteiramente de luz fosse uma questão de lhe encontrar viagem suficientemente longa para que a natureza da sua escuridão não pudesse ficar incólume.

#001991 – 09 de Novembro de 2024

No segundo livro da série “Wayfarers”, Becky Chambers consegue interessar-seme numa sensibilidade que tem algo de cibernético mas é surpreendentemente humano. A maior parte das histórias sobre ou com inteligências artificiais que chegam ao mainstream são aborrecidas. Geralmente pouco mais do que um reflexo directo e insuportavelmente previsível das inquietações do senso comum ou da cultura dominante. Não admira, por isso, que boa parte destas histórias sejam thrillers em que uma inteligência artificial “acordou” e cuja consciência se torna imediatamente um perigo para a sobrevivência da espécie humana.

Já em “A Close and Common Orbit”, seguimos duas timelines, acompanhando as duas personagens principais. Uma começa na infância de uma rapariga humana, a outra passa-se no presente, contada do ponto de vista de uma inteligência artificial. O paralelo é incrivelmente interessante. Na primeira timeline, uma inteligência artificial cria e protege a rapariga humana, como uma mãe digital. Na segunda timeline essa rapariga, agora mulher, ensina uma inteligência artificial a fazer-se passar por humana, é sua amiga e cúmplice.

São especialmente convincentes momentos como aquele em que uma inteligência artificial ensina a rapariga o que é comida sólida, e a estranheza com que a rapariga aprende a mastigar e engolir comida ecoa momentos anteriores no livro. Como um pormenor que nunca tinha visto noutras histórias sobre ou com IA: Sidra, a protagonista inteligência artificial, refere-se ao seu corpo sintético na terceira pessoa, como outra coisa, não parte do eu. Quando a rapariga aprende a ser humana, essa estranheza também é corporal. Num e noutro caso, vemos seres que estão a aprender o que é ter agência, quais os limites da autonomia, e que crescem no corpo que habitam. Está muito bem feito e o livro e meio que li até agora desta autora confirmam-na já como uma das minhas favoritas.

#001990 – 08 de Novembro de 2024

Uma tarde de Verão de São Martinho. Oito quilómetros de surfstake. Três bolas de acaí. Por-do-sol a descer sobre os surfistas. Muito sossego.

#001089 – 07 de Novembro de 2024

Sento-me no metro e só há um terço do banco disponível. O rapaz à minha direita, nos seus vintes, tem as pernas abertas de forma a ocupar o seu lugar e boa parte do meu. Peço-lhe espaço, olho-o nos olhos, ele abana a cabeça como quem percebe, mas praticamente não se mexe. Tenho metade do corpo fora do banco, do lado do corredor. Dirijo-me a ele de novo e peço, “pode dar-me metade do espaço, que tal, metade para si, metade para mim?”, ignora-me. À sua frente está uma rapariga, da mesma idade. Talvez a atitude do rapaz, esta espécie de teimosia territorial, tenha sido espicaçada por uma vontade inconsciente de a impressionar. Mas na altura, há dez minutos atrás, não pensei em nada e reagi numa versão de road rage em transporte público. Toquei no rapaz: empurrei-lhe gentilmente a perna, a demonstrar o lugar dele, apontando com a outra mão para o meio. Não o devia ter feito. Não foi uma agressão, mas foi uma invasão do espaço desta pessoa, mais grave que a sua invasão do meu espaço, porque eu toquei-lhe. Os dois saem na paragem seguinte e eu fico sentado, envergonhado e espantado com a minha reação, convencido de que sou também, como qualquer pessoa, capaz de comportamentos imbecis.

#001988 – 06 de Novembro de 2024

Trump venceu. E vamos ficar a saber em breve como o mundo perdeu. Normalizou-se, mais que isso, institui-se a violência verbal e política, a instrumentalização do conflito, as alianças estratégicas com os inimigos mais aguerridos da democracia. É este o centro político, hoje em dia.

Para ser radical basta defender que todos os seres humanos têm os mesmos direitos, que o genocídio é inaceitável, que as pessoas têm direito a uma vida digna, a cuidados de saúde e condições de trabalho mínimas. Nunca durante o meu tempo de vida, quase 50 anos, a barra esteve tão baixa para que qualquer defesa da civilização, do respeito mútuo e da paz entre os povos, por mais moderada, fosse considerada como perigosa ideologia . Não são só os fascistas que comemoram, são também instituições cujo conservadorismo tem financiado estes políticos, como a Igreja Católica, que é a instituição em todo o mundo que mais dinheiro gastou para influenciar as leis do aborto, com sucesso já em muitos países. E bilionários que querem destruir o que resta do estado social, como Elon Musk, que poderá vir a ter poder de decisão e assento no governo que aí vem.

O perigo não está só nos grupos mais extremistas que estes movimentos políticos atraem, está também na larga base de apoio popular, nas muitas coligações de interesses económicos e políticos internacionais que financiam e influenciam o poder. As próximas décadas poderão piorar as crises mais urgentes que enfrentamos, com milhões de refugiados do clima e da guerra a serem tratados desumanamente, com a supressão da liberdade de imprensa, com retrocessos nas políticas climáticas, com a abolição de direitos de pessoas queer, mulheres e minorias. E com o agravar de guerras que já provocaram um número obsceno de vítimas mas que ameaçam a qualquer momento tornarem-se conflitos regionais alargados.

O nosso luto não tem tempo e à nossa urgência nem interessa assim tanto quão moribunda está a democracia. Há que reforçar o quanto antes os laços de solidariedade, garantindo que defendemos, sempre, a nossa humanidade comum.

#001987 – 05 de Novembro de 2024

Esta é a noite das eleições americanas. Mas é possível que sejam necessários dias para conhecer os vencedores. E semanas ou meses para percebermos como se comportam os vencedores e perdedores.

#001986 – 04 de Novembro de 2024

Christoffer Guldbrandsen acompanhou Roger Stone durante muito tempo. No documentário que estreou recentemente, vemos o que já sabíamos, mas às claras. Este tipo de política tem braços armados, é a favor da violência contra adversários e despreza a democracia. Trump é a figura mais perigosa desta forma de conquistar e exercer o poder, mas no nosso país também nos devemos sentir ameaçados. Os próximos tempos serão difíceis, quaisquer que sejam os resultados das eleições americanas.

#001985 – 03 de Novembro de 2024

Escuto o especial Harris vs. Trump do canal de YouTube do DiEM25 e surpreendo-me. Pelo menos nos primeiros 20 minutos é unânime: todos os que falam dizem que não é possível escolher entre um e outro. As eleições democráticas, em sistemas bipartidários, tem este problema, entre outros: por vezes ambos os candidatos são maus. E se, veio-me à cabeça, os boletins tivessem dois lados e pudéssemos escolher, ou um voto negativo ou um voto positivo? Assim, dávamos um voto a um candidato que nos agradasse. Mas podíamos, em vez disso, tirar um voto a um candidato que nos desagradasse. Era uma forma de podermos ao menos escolher o candidato que nos desagrada mais, aquele que não queremos que ganhe, mesmo se não queremos que o outro ganhe.

#001984 – 02 de Novembro de 2024

Só tenho uma palavra para assinalar a entrada com o número título do livro do Orwell: Trump.

#001983 – 01 de Novembro de 2024

De uma língua para outra até pequenos detalhes mostram formas de nos exprimimos diferentes. Traduzir é aproximar, mais que isso não é possível. Em inglês, tenho sempre a tendência de traduzir literalmente do português, chegando a frases do género “a wrong color”, por exemplo, “I payed for blue, but received a wrong color instead”. Todos os tradutores me corrigem para “the wrong color”. Já aprendi, à força de tanta correção, que é assim que se diz em inglês. Mas continua a incomodar-me esta ideia de “a coisa errada”, em vez de “uma coisa errada”. É que, em casos em que há só uma coisa certa, o número de coisas erradas é infinito. Não só infinito, mas é um infinito incontável, como se diz matematicamente. A coisa errada a que me quero referir é uma entre uma infinidade de coisas erradas possíveis. Enquanto que a coisa certa é só uma. Se traduzir esta forma de pensar em português, diria “the correct thing”, “a wrong thing”. Mas não é assim que se diz em inglês. O que significa que, numa minúscula escala, não estamos na verdade a dizer a mesma coisa, numa e noutra língua. Nenhuma é certa, talvez ambas estejam ligeiramente erradas. Nada há nada de mais humano do que falhar o suficiente para nos entendermos.