Kroeber

#001786 – 26 de Julho de 2024

Oitavo dia. Em Pitões de Júnias, os cães são grandes, são muitos e andam soltos. São também cães tranquilos, habituados a pessoas. Está manhã, antes de pedalar, comi um croissant na única e excelente padaria da aldeia e uma senhora explicava que os cães são tranquilos precisamente porque andam soltos. Posso comprovar que à noite não ladram e que sempre passei por eles à vontade. A minha chegada à aldeia foi mesmo escoltada por cães. Um pastor regressava de moto 4 e era seguido por cinco cães, um border collie a liderar. Hoje pedalei até Venda Nova e fiquei num hotel. Estou gordo e cansado, feliz mas fora de forma. Não é isto exatamente bikepacking, mas são férias, pedalei e visito sítios bonitos. Faz-me bem.

#001785 – 25 de Julho de 2024

Sétimo dia. Ontem algo que comi fez-me mal. Passei a noite a vomitar. Fiquei mais um dia em Pitões das Júnias, de cama. Ainda não comi, porque pensar nisso me dá a volta ao estômago. Sair do alojamento também não me atraiu, por outro motivo, mais estranho, que nem sei bem explicar. Acho que gosto muito mais do mar, de horizonte, do que de montanha e aldeia. A ideia de sair para a rua, assim tão vulnerável, numa aldeia, mexeu comigo a fez-me, ainda mais, ficar fechado entre paredes. Vou agora tentar comer e esticar as pernas. E amanhã terei de ir embora.

#001784 – 24 de Julho de 2024

Sexto dia. A minha maior subida a pedalar desde que aprendi a andar de bicicleta. Um calor tórrido de que fugi acordando às quatro da manhã. Descubro um local perfeito para o campismo selvagem, com uma ribeira, muita sombra e verde. Mas é de acesso muito difícil com bicicleta. Acabo por reservar uma noite num alojamento em Pitões das Júnias. Continuo a escutar galego, o restaurante Dom Pedro é popular junto dos galegos. Tenho medo de vacas, fragilidade que me ficou impressa em criança e que afinal não superei como pensava. As cachenas são pequenas mas têm cornos gigantescos e afiados e um olhar de desafio, quando escutam o som da bicicleta. Algumas dão mesmo uns passos atrás, para me encarar, bloqueiam o caminho, enfrentam-me. Tudo isto o vejo de longe, não arrisco. Vou dormir uma soneca numa cama. Amanhã sigo para Arco de Baúlhe.

#001783 – 23 de Julho de 2024

Quinto dia. O mais quente e mais preguiçoso. Depois de uma noite mal dormida, com o barulho dos vizinhos do parque do campismo a deixar-me menos irritado do que seria de esperar mas, ainda assim a impedir-me o sono. Desvio-me para o Moinho dos Moços e descubro um Ribeiro com água fresca, pedras com musgos, libélulas azuis e borboletas. Dispo-me e tomo um banho que me arrefece a inquietação. O coração desacelera e refresco a impaciência. Amanhã levantei-me às 5h00. Vai ser um dia muito quente e vou subir muito. Preciso de descansar. Mas tenho um pouquinho, não muito, mas um pouquinho mais de paciência. Comi uns pimientos e vou para o gelado agora com uma boa disposição. Leio muito, respiro melhor.

#001782 – 22 de Julho de 2024

Quarto dia. Subiu a temperatura. Fiz vinte preguiçosos quilómetros ao longo do dia, quase sempre à sombra. Nunca longe da margem do Lima. Dormi uma soneca, comi pimentos de padron, dormi mais outra soneca. Fui de novo à aldeia, encher daquela água fresca os meus cantis. Desacelerei ainda mais. Agora bebo uma caña e espero a minha lasagna de carne de Cachena. O Naruto anda por aí – o malamute do cozinheiro aqui do Chiringuito. A diferença horária faz com que às dez da noite ainda não tenha anoitecido completamente. Gosto de andar fora de ritmo. Como a horas diferentes das pessoas daqui, vou para sítios sem ninguém, passeio a tranquilidade que me vai nascendo.

#001781 – 21 de Julho de 2024

Terceiro dia. Já o tempo parou. Fico baralhado, a pensar que já passaram mais dias. Dormi dez horas na rede. Pedalei ao longo do Lima, num percurso tão bonito como o que circunda a Lagoa Azul, nas Sete Cidades, mas ciclável. Dormi uma sesta com o som da água. E quando entrei no Lima, não quis sair mais, a água à temperatura que a minha alma precisava. Depois ainda passei pela aldeia de Pazos, onde o sossego me curou. Fiquei sentado na fonte, onde a água de lavar a roupa corria sem um ruído que a abafasse. O reflexo da água na pedra era lindo, filmei uns segundos com banda sonora líquida. Decidi ficar até quarta, não sem me espantar de novo com a elasticidade do tempo, que parece do meu lado.

#001780 – 20 de Julho de 2024

Segundo dia. Depois de ter adormecido a ver as estrelas, cruzo-me com um garrano ao começar a pedalar. Serão 43 quilómetros a subir, pouco menos de quatro horas a pedalar. Uma parte à chuva, atravessando um nevoeiro cerrado. Assim que passo a fronteira, páro para comer. Uma mesa de velhotes portugueses e galegos bebem e falam, cada um na sua língua. Como umas lulas grelhadas, e o molho todo com pão. O presunto e os espargos tinham aberto o apetite. Deixa de chover e espreito as previsões. Haverá umas duas horas sem chuva, que eu aproveito. A ideia era ir até Pitões das Júnias. Passo pelo rio Cabril, e ainda me vou convencendo, a custo que as pernas ainda sobem mais 25 quilómetros. Mas vejo uma placa e desvio-me para Muiños. Há aqui um parque de campismo, num local muito bonito. O banho quente que tomei foi dos melhores da minha vida. Está será a segunda noite que durmo na rede. Talvez chova.

#001779 – 19 de Julho de 2024

Primeiro dia. Acordo às 5h30 para ir de comboio até Viana do Castelo. Uma bola de berlim no Zé Natário e pedalo até Ponte da Barca, com sombra. Afasto-me um pouco do Lima, para 10 kms pela EN-230. Entre-ambos-os-rios é um local rodeado de água e verde. Como um prego com queijo da serra em pão rústico e leio um pouco. Desço até ao rio. Uns holandeses tomam banho, parecem enregelados, queixam-se o suficiente para me adiar o banho. A margem é linda, erva e flores, à sombra de árvores de raízes submergidas. Molho os pés e apercebo-me de que a margem cheira muito bem. As flores roxas são de hortelã, bem viçosa aqui perto da água, que afinal está óptima. Mergulho com prazer, a tranquilidade nem sequer é perturbada por uma voz feminina francesa a falar, quase em surdina, sobre as eleições no seu país. Escrevo e o som do vento é agradável. Lembro-me dos alfaiates, da libélulas azul eléctrico a voar silenciosamente sobre a água. Hoje no comboio, vacilei. Este coração empedernido, por momentos, sentiu uma enorme gratidão pela vida que tenho. A solidão é a cura, a forma de me preparar para lidar com o resto do mundo.

#001778 – 18 de Julho de 2024

A forma como o actual governo de Israel conseguiu obter um apoio quase incondicional dos Estados Unidos e da União Europeia mostra, entre outras coisas, como os fundamentos da política identitária falham tragicamente.

Mais ainda que apoio militar e político, o governo de Israel conseguiu que os governos seus aliados limitem de forma intensa e implacável qualquer manifestação de uma opinião contrária ao caminho actual, de genocídio, repressão e colonialismo levado ao extremo. Nos Estados Unidos e um pouco por toda a Europa, na Alemanha com uma intensidade alarmante, quem protesta pacificamente sofre violência policial, quem exibe uma bandeira da Palestina é removido do espaço público.

O governo de Netanyahu conseguiu instrumentalizar um dos mantras do activismo identitário: que só a vítima de opressão tem legitimidade para definir o que é opressão e que tudo aquilo que é apontado pela vítima como opressão o é obviamente.

Muitos judeus, por todo o mundo, estão na primeira linha dos protestos, sofrem cargas policiais e arriscam diariamente as consequências da sua resistência, em solidariedade com os palestinianos. Ainda assim, este governo israelita conseguiu convencer o mundo que é a máxima instituição que representa a voz dos judeus todos, a viver em Israel ou na diáspora, todos os que vivem ou já não estão entre nós. E que o mundo deve seguir à risca o seu regulamento sobre o que é ou não é anti-semitismo. E para Netanyahu qualquer opinião contrária às suas políticas é, obviamente, anti-semitismo.

Estou muito pessimista. Não acredito que consigamos, nos tempos que se avizinham, tirar lições disto. Temos até agora combatido opressão com opressão, intolerância com intolerância, ataques a liberdade de expressão com o escalar a esses ataques. Não vejo indícios de mudança. Temos de resistir, continuar solidários com todos os seres humanos que sofrem às mãos de exércitos invasores ou sob o jugo dos seus próprios governantes. E encontrar forma de manter lucidez argumentativa, abertura e respeito por quem discorda de nós, e não sucumbir às armadilhas que levam a desumanizar o adversário ou a desconsiderar vozes dissidentes. Mas não sei como.

#001777 – 17 de Julho de 2024

Sobre Homogenic, diz Björk: “we did not want to go back to Nature; we wanted to go forward to Nature”. Eloquência que só alguém que fala inglês como língua estrangeira pode ter.