Kroeber

#001932 – 11 de Setembro de 2024

Há uns 20 anos, o meu coração estilhaçou-se. Foi descuido meu, que não posso culpar à pessoa que na altura dele cuidava melhor que eu. Desde então que embalo vidro partido, como na canção dos Pearl Jam. Gesto patético, que nem reverte a entropia gerada nem me consola. Ando a ver se, na terapia, faço vitrais com os cacos do que sentia. Pouca esperança tenho tido de me refundar, enviando vidro velho para ser derretido, soprado e moldado para o que sou e posso ainda ser. Descrevo as zonas por sarar, de pouco talento, em que posso incluir uma certa insistência em usar metáforas cujo significado não consigo intuir, coisa pouco recomendável sendo eu o culpado de as expressar.

#001931 – 10 de Setembro de 2024

Um guna de capacete na testa vem no sentido contrário, na Ponte de D. Luís. Desde há algum tempo que o trânsito está restrito, permitido apenas a peões, bicicletas e táxis. Este homem faz guinar a motoreta para quase chocar comigo, talvez tendo com isso o gozo de me intimidar. O capacete, comicamente colocado como uma coroa inclinada, por cima da cabeça, deixa-me ver-lhe a expressão facial, que é vazia.

#001930 – 09 de Setembro de 2024

Descubro que a Fnac de Santa Catarina vai fechar no fim do mês. Continua este esvaziamento da baixa portuense de tudo o que não serve a indústria do turismo.

#001929 – 08 de Setembro de 2024

Cheguei muito tarde à música de Jeff Buckley. Ao longo dos anos fui talvez criando expectativas desajustadas. Esperava comover-me. Mas, embora goste da sua forma de tocar guitarra, as canções não mexem comigo. Muito diferente foi a experiência de escutar Nick Drake, que também morreu cedo demais. Gosto de tudo na música de Nick Drake, e há partes que nem conheço bem da minha sensibilidade a serem activadas. A música pode ser explicada, ensinada e aprendida de muitas formas. Mas o seu efeito em nós é ancestral, físico, profundo. E difícil de compreender. Não que seja necessário fazê-lo para usufruir do seu som.

#001928 – 07 de Setembro de 2024

Num emprego, há muito anos, as coisas estavam mal. Havia pouco que fazer e fui inventando tarefas. No início eram úteis, embora secundárias, sobretudo a reorganização de coisas que já funcionavam. Depois foram-se tornando menos necessárias e por vezes repetiam-se em ciclos que me tornavam uma espécie de Sísifo burocrático. Hoje, tenho tarefas importantes, cuja produtividade é analisada em detalhe e cuja eficiência me é exigida. E foi, entre outras coisas, a resistência mental que desenvolvi a fazer ações mecanizadas muitas vezes, ao longo de horas, dias e semanas, no computador, que me preparou para fazer bem o que faço. Isto diz-me que os pragmáticos não têm a razão toda. Por vezes, o inútil é solo fértil para algo de produtivo.

#001927 – 06 de Setembro de 2024

Algumas pessoas convenceram-se de que tudo o que é mais relevante na sua vida foi por elas conquistado. Que o mérito é apenas delas: que são o argumentista, realizador e protagonista de tudo o que de notável lhes aconteceu. Estas pessoas têm-me parecido mais permeáveis a um tipo de insensibilidade: a falta de compaixão que considera que quem falhou, não atingindo as mesmas proezas de empreendedora auto-construção, só a si mesmo pode culpar. Nisto, talvez a discussão sobre o livre arbítrio possa ajudar. Diz Sapolsky que em tantas coisas a ciência descobriu a causa que leva a um efeito e que o resultado tem sido o de as sociedades se tornarem mais humanas. Dá exemplos como deixarmos de queimar mulheres porque as culpávamos de bruxaria num ano de colheitas desastrosas, deixarmos de considerar que os epilépticos estavam possuídos por demónios, deixarmos de culpar as mães de esquizofrénicos de não os amarem e dessa falta de amor causar a esquizofrenia. Quero acreditar que os avanços na ciência terão um efeito assim. Mas em tantas coisas considero que as mudanças têm de ser políticas, que descobertas científicas não desencadeiam automaticamente o que o poder político consegue impedir.

#001926 – 05 de Setembro de 2024

Robert Sapolsky começa A Primate's Memoir com a deliciosa nota autobiográfica: “I joined the baboon troop during my twenty-first year. I had never planned to become a savanna baboon when I grew up; instead, I had always assumed I would become a mountain gorilla.”

#001925 – 04 de Setembro de 2024

Os registos arqueológicos são finitos. Seja o que for que ainda não se encontrou, fósseis, ferramentas, pinturas, objectos, vestígios biológicos, existe já. Pode ainda diminuir o seu número, degradar-se o seu estado de preservação ou impossibilitar-se a sua descoberta. Cada vez que se encontra um destes indícios do passado, é algo de muito precioso, um testemunho que sobreviveu a probabilidades inclementes.

#001924 – 03 de Setembro de 2024

Acalentar o tédio, esse deserto imenso, solo sedento de qualquer semente de criatividade.

#001923 – 02 de Setembro de 2024

Volto a escutar Rules, Jewels, Fools, de 2004. Só agora me apercebo que este álbum dos Zen se assemelha imenso aos álbuns seus contemporâneos dos Faith no More.