Kroeber

#001951 – 30 de Setembro de 2024

Começo o dia com outra pequena travessia de ferry. É uma cena inicial clássica para uma narrativa de viagem. O pequeno catamarã eléctrico que liga as duas margens do Mondego estava carregado de bicicletas. Meto conversa com o senhor que as vai desprender, um Buarqueiro bem disposto, de pele torrada do sol, que me diz que o recorde foi um dia em que conseguiu ali encaixar 19 bicicletas e duas trotinetes. O caminho é mais curto que o de ontem, feito no sentido contrário da viagem que fiz com um amigo da Nazaré para norte. São Pedro de Moel surpreende-me, as casas de varandas de madeira são bonitas, o mar ali é de inverno, o som imenso, há ondas excelentes e apenas um surfista na água. Começo o jantar debaixo do sol poente, a dourada grelhada acabo-a comendo a cabeça com as mãos.

#001950 – 29 de Setembro de 2024

Adormeço com o som de mar mais estrondoso e terrível da minha vida. Meio maravilhado com a magnitude sonora, assustado com não ver a fonte do som, fui enchendo a imaginação de cenários de tsunami, sentindo-me mais e mais pequeno, embalado pelo balanço da rede. De manhã saí de Mira e cedo se juntou a mim um viajante suíço, que pedala pela Europa há um mês. Vamos a falar sobre a beleza da natureza e a fealdade do capitalismo até Quiaios. Ele segue a direito, encaminho-o ao Miradouro da Bandeira, de onde poderá ver a costa no sentido norte. Dei-lhe algumas indicações sobre o ferry e disse-lhe que o Cabedelo é o melhor sítio para surfar e segui para a estrada do Enforca Cães, contornando a Serra da Boa Viagem do lado mar. Sento-me para comer no Volta e Meia, feliz.

#001949 – 28 de Setembro de 2024

O nascer do sol no Douro dá-me balanço para o dia. Ao chegar à Ria, flamingos e cavalos. O Ferry empurra-me para a etapa final. Há jetbikes a competir em Mira. Os patos não parecem incomodados, mas a mim cansa-me o som dos motores. Um sumo de laranja, cenoura e gengibre prepara-me o por do sol. A noite será ao relento da rede, com o toldo por cima e logo a seguir as estrelas e um cometa de passagem, depois de 80 mil anos.

#001948 – 27 de Setembro de 2024

Danço ao swing de deserto dos Tinariwen. Celebro já uma sensação quase nómada. De manhã, alforges carregados, pedalo mais de 100 kms.

#001947 – 26 de Setembro de 2024

Sábado começo nova viagem. Pedalo de Rio Tinto até à Foz do Arelho.

#001946 – 25 de Setembro de 2024

Envelheço e digo que tenho mais jeito para tio que pai, mais inclinação para amigo que companheiro romântico. Não sei se é desculpa, para disfarçar a solidão e o hábito. Mas acredito que acredito nisso.

#001945 – 24 de Setembro de 2024

Hoje o meu avô faria 100 anos. Nem mil séculos curariam esta saudade.

#001944 – 23 de Setembro de 2024

Escuto Piedmont Apocrypha, a sua nostalgia psicadélica muda a cor do quarto, a chuva lá fora molha o ruído dos pneus dos automóveis. Soletro desalento e aconchego com as mesmas letras interiores.

#001943 – 22 de Setembro de 2024

A voz de David Sylvian, em Transit, de Fennesz, embala-me e magoa-me na sua delicadeza triste de Cassandra. Faz vinte anos este álbum. Em 2004 escutávamos já esta implacável melancolia: “say your goodbyes to Europe, our history dies with Europe”.

#001942 – 21 de Setembro de 2024

Robert Sapolsky escreve sobre a visita aos gorilas da montanha, no Ruanda, 6 meses depois de Diane Fossey ter sido assassinada. Segundo ele, tinha então finalmente passado aquela fase da vida em que já não podia dar-se ao luxo de gastar o tempo necessário para viajar grandes distâncias à boleia, mas ainda não podia dar-se ao luxo de gastar o dinheiro necessário para viajar através de um meio mais rápido.