#001676 – 07 de Abril de 2024
“Frontera Verde” é excelente. Tem a mão de Ciro Guerra, o seu talento em iluminar-nos com a espiritualidade dos povos da amazónia.
“Frontera Verde” é excelente. Tem a mão de Ciro Guerra, o seu talento em iluminar-nos com a espiritualidade dos povos da amazónia.
É mais difícil sentir compaixão por mim. Estou em desvantagem em relação ao resto da humanidade, desculpo-me muito pouco. Não posso dizer, de mim próprio, que não me posso mudar, que não sei o que sinto, que sou uma pessoa com uma vida interior e motivações independentes de mim. Espero de mais, exaspero-me muito, desespero bastante.
Não posso viajar no tempo, a não ser através da imaginação. Ultimamente, fico a pensar no que seria ter escutado a música dos The For Carnation há 25 anos atrás. Ter começado a viajar de bicicleta na adolescência, ter descoberto o skate e o surf na pré-adolescência. É inevitável esta melancolia sobre o passado que não aconteceu. A sua origem é benigna: estou sempre a reinventar-me, a descobrir novas paixões, coisas que não sabia serem tão importantes para mim. Demoro a lá chegar, o futuro trará ainda mais actividades e predileções que gostaria de ter descoberto cedo. Mas, porque nunca é tarde demais, é sempre tarde. É sempre tarde, só não é tarde demais.
É tão estranho para mim o contacto com a teologia cristã. Reconheço os conceitos, ainda sei muita coisa de cor. Mas não consigo perceber como acreditei tanto, tão intensamente, tanto tempo naquilo. A pessoa que fui é como um conhecido, alguém com quem lidei de passagem mas a cujos pensamentos e mundo interior não consigo aceder.
Na Alemanha, judeus são presos com acusações de antissemitismo, ao protestarem contra o genocídio na Palestina. Nos Estados Unidos, está quase a ser aprovada uma lei, o Antisemitism Awareness Act, que redefine o conceito de Antissemitismo passando a incluir simples críticas ao estado de Israel.
Não consigo encontrar melhor exemplo das limitações aberrantes da política identitária. Historicamente não existe maior vítima que a figura do judeu. Ao longo da história, um povo foi perseguido. Nos últimos séculos, intensificou-se a perseguição na Europa culminando no horror nazi. O que aconteceu na segunda guerra mundial é tão inconcebível que hesitamos nas comparações. A Shoah é um acontecimento em que a própria humanidade enquanto hipótese de civilização ficou posta em causa.
Mas agora, chegamos a uma situação em que simplesmente referir a Nakba é arriscar uma acusação de Antissemitismo. É preocupante esta situação em que, em vez de aprendermos com a história, esta é instrumentalizada pelos senhores da guerra. Isto acontece com a conivência internacional, com apoio financeiro, político, militar, moral e agora até jurídico.
O actual governo de Israel conseguiu apropriar-se da definição de tudo o que concerne o estatuto histórico de vítima de um povo (em que há enorme pluralidade filosófica e política) e da consequente definição do que constitui uma ofensa ou ameaça (de discurso ou pensamento) a todos os judeus. É algo feito de forma cínica, estratégica, e com grande eficácia.
É uma terrível prova de que não funciona decidirmos que apenas as vítimas têm o direito de determinar o seu próprio estatuto, o que as ofende, os limites do discurso dos outros. Inevitavelmente quem se apodera do status quo é quem tem mais poder e influência política, não quem é mais vulnerável. Os judeus alemães que diariamente se manifestam solidários com a causa Palestiniana sofrem agora também a violência do estado alemão, para além da ameaça bem real e crescente da nova onda de extrema direita. Não são eles mais vulneráveis que os actuais governantes israelitas?
No movimento de luta pelos direitos civis nos EUA, ou com a Comissão de Verdade e Reconciliação na África do Sul, envolveu-se uma base larga da população (quando possível mesmo os agressores) para que as coisas mudassem. O actual mainstream liberal de origem estado unidense atomiza as pessoas hipervalorizando as diferenças, ao mesmo tempo fragmentando e essencializando aspectos humanos, cristalizados em unidades de valor político, chamando-lhes identidade, assim fechando artificialmente as pessoas em grupos estanques que se autodefinem.
Não vejo nenhuma saída disto. Mas a resistência de certeza não passará por mais policiamento do discurso. Só iremos resistir com solidariedade e união, dando importância ao que é mais importante, a nossa humanidade comum.
Há várias coisas que não gosto nos desportos de equipa, todas elas acontecem do lado dos adeptos. Uma das que mais me desagrada é o facto de uma derrota ser vista, mais do que como um facto desportivo, como uma falha moral: falta de amor à camisola, de honra, de brio.
Escuto com alguma frequência desabafos de ateus que dizem ter inveja de quem acredita. Nunca entendi muito bem isso. Mas imagino ser quase homóloga esta sensação: tenho uma profunda inveja de quem consegue abstrair-se da política. Ignorar as tropelias de quem governa, as mentiras, o mau teatro, a corrupção, a retórica de má qualidade, as notícias, muitas vezes também elas fracas, de todo este espectáculo. A política não é coisa bonita nem excitante. É necessária. E não querer saber de quem governa, é garantir que nos governam, não queremos saber do poder é assegurar que não o teremos, ignorar os nossos direitos é abdicar de sermos cidadãos. Os assuntos que têm a ver com os nossos interesses colectivos são confusos e difíceis. Mas pouca coisa terá tanta importância. Ainda assim, tenho alguma inveja da leveza, da alegre leviandade que imagino nos outros e que não consigo ter. Sofro de ansiedade democrática.
Em Portugal, liberdade ainda é palavra bela. A direita populista portuguesa não conseguiu, como nos EUA os trumpistas, apropriar-se da palavra. Liberdade, mesmo quando usada para referir liberdade de expressão, não é atributo de um lado da trincheira, virtude de broncos que se julgam rebeldes heroicos numa guerra cultural. Liberdade, inclusive a de expressão, é um direito humano, um direito de todos os seres humanos. O 25 de Abril terá este ano talvez contra-demonstrações dos que gostam pouco que a liberdade seja assim, universal. Mas estamos prontos para defender Abril, para nos unirmos em solidariedade.
Amanhã o 25 de Abril faz 50 anos e estou atrasado cerca de um mês na minha escrita diária. Tão nua estrutura, sem títulos nem imagens, sem timestamp, apenas uma data e um cardinal, obriga-me a uma rotina que desleixo, às vezes, como agora, abundantemente. Virá a data que não poderei aqui assinalar de forma síncrona e direta.
Escuto a entrevista de Maria João Avillez a Pedro Passos Coelho. De certa forma, com amargura, apercebo-me que tenho saudades deste homem. É quase uma versão portuguesa da Margaret Thatcher. Não esconde o que é, não tem grandes sofisticações retóricas. É um adversário político transparente, tão transparente como pode ser um político. Para conhecer o seu pensamento, pasme-se, basta escutá-lo a falar de si próprio e das suas ideias. A política actual da direita conservadora e ultra-conservadora é manhosa, hipócrita, militantemente mentirosa. Escutar Passos Coelho é uma lufada de ar quase fresco. O passado recente é tão distante.