Kroeber

#001630 – 21 de Fevereiro de 2024

Do lado de fora da janela os pássaros do costume assinalam-me a insónia. Quando ouço este canto, em todo o caso bastante agradável, sei que é muito tarde. Têm o ritmo de uma conversa, frases melódicas e um silêncio seguido de resposta. Leio o livro do Manuel Abrantes. É um primeiro romance excepcional.

#001629 – 20 de Fevereiro de 2024

Greve dos jornalistas, finalmente. Nos mais de vinte anos desde que terminei o curso de jornalismo não houve uma única greve do sector em Portugal. De facto, não havia greve de jornalistas há cerca de 40 anos. Numa profissão com condições tão precárias, já vem tarde. Com a ascensão dos spin dictators, o ataque a whistleblowers e figuras como Assange e a jornalistas como Jamal Khashoggi, nunca foi tão importante como agora haver jornalismo independente e redações com alguma resiliência em relação às pressões económicas e políticas. Têm a minha solidariedade. Não podemos ficar entregues ao fake e ao spin e os jornalistas têm de ser devidamente recompensados e a sua actividade dignificada.

#001628 – 19 de Fevereiro de 2024

Mais intrigante do que a origem das palavras é a história de como muda o seu significado. Ao traduzir um trecho, vou procurar sinónimos de deferência, palavra precisa mas feia. Deparo-me com condescendência e apercebo-me que significa também, segundo Priberam, “Flexibilidade de carácter que se acomoda ao gosto e vontade doutros”. Condescender, imagino, será o que um servo, um criado, um subalterno faria em relação aos desejos e ordens de um superior. Talvez a filigrana do discurso, necessária para acudir ao engolir de sapos e à adequação a caprichos irrazoáveis, tenha criado um tom que ainda hoje reconhecemos como sarcástico. Algo semelhante aconteceu com a expressão LOL, ocorre-me. LOL, inicialmente abreviação de “laughing out loud” era usado para expressar riso por escrito. O que significa que poderíamos escrevê-lo sem rir. Dito, como agora, de viva voz, sem riso, é imediatamente sarcástico. Ou, mais precisamente, condescendente.

#001627 – 18 de Fevereiro de 2024

Estou 25 dias atrasados em relação à realidade do calendário. Datar é confundir. É talvez o facto mais revelador em todo este diário online.

#001626 – 17 de Fevereiro de 2024

Supertubos em Peniche, partidos em Belém.

#001625 – 16 de Fevereiro de 2024

A garota não e a sua Canção a Zé Mário Branco comovem-me. A primeira vez que a escuto fico numa sintonia dorida, uma solidariedade urgente. Falha-me a voz. Tento cantar, consigo apenas acompanhar com os acordes na guitarra. Não nos vão roubar de novo o país, estes que agora se chegam ao poder. Não vamos deixar o ódio desgovernar o que resta da nossa democracia. É tempo de união e resistência, de defesa de todos, sejam quais forem as suas características pessoais ou de grupo. Porque esta doença chegou primeiro a outros países, sabemos como os seus promotores a espalham, como incitam à discórdia, como mentem e manipulam, como distraem com demagogia e populismo. É urgente a verdade. E sim, como diz a canção, é muito querida a liberdade.

#001624 – 15 de Fevereiro de 2024

Tempo de ler Spin Dictators, de Sergei Guriev e Daniel Treisman. Em Portugal há um aspirante a este poleiro, há que nos inocularmos. A tradução portuguesa é “A Ditadura Adaptada ao Século XXI”, e foi publicada recentemente pela chancela Desassossego da Saída de Emergência.

#001623 – 14 de Fevereiro de 2024

Acho que estou a ficar velho. Começo a gostar dos Beatles.

#001622 – 13 de Fevereiro de 2024

Quase um mês de atraso deste meu diário em relação ao calendário. Ontem soubemos os resultados das eleições. A democracia não convence cerca de um milhão de portugueses. Os tempos que se avizinham serão difíceis e importantes.

#001621 – 12 de Fevereiro de 2024

O novo filme de Yorgos Lanthimos é incrível. Não li o livro de Alasdair Gray, por isso só consigo escrever sobre a adaptação ao cinema de Poor Things. A forma mais resumida de pensar na narrativa foi de vê-la como um anti-Frankenstein. Na obra-prima de Mary Wollstonecraft Shelley, a criatura é um ser existencialista. Sofre porque não encontra um lugar no mundo, tem de lidar com o horror de conhecer o seu criador, que não lhe dá respostas, nem sequer o aceita. Sente-se absolutamente deslocada, sem propósito. É uma espécie de espelho para a angústia existencial humana. A criatura é como um humano que desperta para a tremenda solidão de existir. Não é isso que acontece com Bella Baxter.

A primeira diferença é que ao contrário da criatura de Shelley, Bella Baxter não é feita de pedaços de corpos humanos, não é uma manta de retalhos. O cientista, em Poor Things, traz de volta para a vida o corpo de uma mulher, o corpo inteiro de uma mulher. A forma de o fazer é macabra, mas encerra uma metáfora. Na história, a mulher que se suicidou estava grávida. O cientista que traz o seu corpo de volta à vida transplanta o cérebro do feto para o corpo da mãe. Neste sentido, é a mulher que morreu que concebeu e deu vida nova à mulher que renasce. E a história de facto tem esse ponto de vista, o de uma mulher que se descobre e determina a si própria. Não haverá uma relação de criatura-criador, como em Frankenstein.

É um filme tremendamente feminista. Assistimos ao crescimento interior de Bella Baxter, já que o corpo desde o início é o de uma mulher adulta. Testemunhamos o despertar de uma mulher para o que é ser mulher. E funciona muito bem esta premissa à Frankenstein. A mente que se vai desenvolvendo naquele corpo de mulher não tem nenhum conhecimento nem nenhum apego às convenções Vitorianas ou a quaisquer outras. A forma como descobre a sexualidade e ao mesmo tempo as expectativas masculinas sobre o seu comportamento é inspiradora. Vai evoluindo de uma certa ingenuidade desarmante, em que nem sequer entende as pretensões masculinas de a dominar, para uma força fundamentada na sua limitada experiência e no crescente conhecimento do mundo e da filosofia. É bastante divertido e revelador ver como o homem que primeiro teve sexo com ela e que se sentia como o tutor não só da sua sexualidade mas da sua autonomia se desagrega, por não ter nenhum argumento para restringir o crescimento de Bella Baxter.

O que é ainda mais impressionante é como depois Bella Baxter descobre como foi gerada, como vai à procura do ex-marido, que a tinha levado ao suicídio. Aí tem de confrontar tudo, a violência patriarcal em que a sua vida aristocrática encaixava, a forma estranha como a sua mãe lhe “ofereceu” o corpo em que veio ao mundo. A mulher que lida com a sua situação social e familiar é uma mulher nova. A novidade vem apenas de ter podido crescer sem as restrições habituais que a cultura usa para condicionar o desenvolvimento de um ser humano. É a sua inicial completa desadequação que lhe permite olhar para as relações de poder à sua volta com um olhar novo. Embora a sensibilidade pós-moderna da narrativa talvez pudesse aborrecer Zizek, há algo, central no filme, que me fez lembrar do filósofo esloveno. O cientista em Poor Things é muito diferente de Frankenstein. É um mestre à Lacan. Segundo Zizek, referindo-se a Lacan, o papel de um mestre é o de permitir ao aprendiz (a palavra não é bem aprendiz, mas não me recordo de outra melhor) superar-se a si próprio. E é esse tipo de relação, inicialmente, que existe entre o cientista e Bella Baxter. E não a relação de criador-criatura. Ainda estou a digerir o filme e talvez leia agora o livro. Tenho muita curiosidade em falar com outras pessoas que o tenham visto.