Kroeber

#002225 – 02 de Julho de 2025

Entre outras coisas, a depressão coloca-nos como observadores passivos da nossa miséria. Cair em depressão é irmo-nos retirando do centro da nossa vontade. Os padrões antigos talvez sejam um conforto melancólico. Como assistir ao consecutivo desligar das luzes de uma rua que conhecemos só assim, ao escurecer. Há que recordar as formas como tenho conseguido reacender-me de volta à vida.

#002224 – 01 de Julho de 2025

O pitch final em que o protagonista comove as outras personagens, mostrando tudo o que aprendeu e quanto cresceu durante as peripécias por que passou é uma das figuras típicas do cinema americano. Uma comédia romântica geralmente tem esta cena como desfecho. Um filme de acção tem, tradicionalmente, outro tipo de desfecho, a que podemos chamar “it ain't over 'till the fat lady sings”. Depois de tudo o que passou o herói, finalmente a vitória, mas então, surpresa, ainda há um final boss, ou uma última tarefa hercúlea, ou um último perigo existencial.

#002223 – 30 de Junho de 2025

Sou o único cliente num brunch nas Caldas da Rainha. A pessoa que me veio atender, que imagino ser quem me vai fazer uns ovos Benedict, está ao telefone em violenta discussão passional, a música de fundo é uma bossa nova de elevador, cantada em inglês.

#002222 – 29 de Junho de 2025

Carpaccio de salmão, retoques num poema que possivelmente lerei numa próxima Purga, Record of a Spaceborn Few, que talvez termine no comboio de regresso.

#002221 – 28 de Junho de 2025

É fácil acreditar que há uma pessoa compatível comigo, uma parceira romântica óbvia, a partilhar sentido de humor e demais apetites de vida. A improbabilidade é que eu alguma vez me cruze com essa pessoa.

#002220 – 27 de Junho de 2025

O que menos gosto na expressão “não há almoços grátis” é o seu uso não metafórico. Há ideologias que consideram que passar ou não fome deve ser tratado como uma questão de mérito e não de direitos humanos.

#002219 – 26 de Junho de 2025

E pago já, digo eu. É para ver se não foge, certo?, pergunta a recepcionista. Verdade, se não ainda tinham de mandar a polícia à minha procura, confirmo.

A primeira vez que vim ao nutricionista esqueci-me de pagar no fim. E embora tenha voltado a entrar pela porta, passado um par de minutos, criou-se a oportunidade para esta private joke com a recepcionista. Na segunda consulta eu apresentei-me e disse, é melhor pagar já, se não ainda me esqueço.

Agora é uma ritual de reconhecimento, que desperta dois sorrisos de cumplicidade e um ligeiro mas suportável embaraço meu, ao pensar que as outras pessoas na sala de espera não têm o contexto para o que estão a escutar.

#002218 – 25 de Junho de 2025

Ao remexer em caixas antigas encontro, entre muitas outras coisas: um bilhete para o “Paisagem Azul com Automóveis” de 2001, a que que assisti como jornalista, a programação do primeiro trismestre de 2004 do CAE, da Figueira da Foz, um CD do Screaming Life/Fopp, dos Soundgarden, com a capa autografada, com pelo menos 3 assinaturas distintas, um caderno cheio de desenhos, incluindo o de uma futura tatuagem, que não se concretizou, mas serviu de inspiração para a minha primeira tatuagem. E depois, em papéis mais antigos: letras para uma banda grunge que nunca chegou a existir, com um colega do secundário, em 92, e mais antigas: letras e acordes de canções em português, das primeiras coisas que compus e toquei na guitarra. Ainda me lembro de algumas melodias e da óbvia e imensa falta de jeito para a música (de que ainda sofro).

#002217 – 24 de Junho de 2025

Saio na Trindade e vejo uma senhora com uma revista na mão e um colete. Tem ar de Testemunha de Jeová. Cometi o erro de a olhar nos olhos, a 20 metros de distância. Embora a evite, acaba por dirigir-me a palavra. Isto vai-me acontecer mais umas 15 vezes, enquanto ando à volta da estação de metro. Há dezenas de pessoas com revistas a abordar as pessoas que passam, mas são da IURD. As camisolas têm o url desta associação criminosa, que me dá a volta ao estômago. A última pessoa que tenta abordar-me deve ter pressentido a minha repulsa. Sussurro “por favor...”, visivelmente incomodado, e o homem quase me pede desculpa. Sei que devo ter compaixão pelas pessoas a quem este culto vitimiza. Mas o nome Igreja Universal, nas camisolas, deixa-me enojado. Antes de me sentar a beber uma Frize, imagino que o Chega terá o apoio destes manipuladores e criminosos, tal como o Bolsonaro teve o apoio dos evangelistas mais extremistas. Será isto, em mim, um exemplo de como é possível ficarmos absolutamente divididos? Será isto o que sente um democrata nos EUA ao ver passar alguém com um boné MAGA? Ou o que sente um bolsonarista ao se cruzar na rua com uma pessoa queer? A tolerância mais difícil, menos imediata, é a tolerância por aqueles que intuimos serem nossos inimigos políticos ou espirituais.

#002216 – 23 de Junho de 2025

Estou grato ao Neil Gaiman por ter morto Sandman. Não só terminou a longa história da personagem com o seu funeral como assegurou que a editora não o “ressuscitaria” como é comum no mundo dos superheróis. Uma história sem um fim é apenas um pedaço de má telenovela. Coisa que é frequente no mundo dos superheróis. The Sandman é diferente. De outra forma não teria ganho o Booker Prize. E é estranho como a morte de uma personagem de uma história de fantasia nos pode emocionar. Mesmo quando somos dela testemunha vinte anos depois de ter lido a banda desenhada, ao assistir à adaptação ao ecrã.