#001632 – 23 de Fevereiro de 2024
Volto a traduzir, diariamente. Recomeçar recomeços, interromper interrupções, é talvez o meu único talento consistente e fidedigno.
Volto a traduzir, diariamente. Recomeçar recomeços, interromper interrupções, é talvez o meu único talento consistente e fidedigno.
Os meus pais fizeram 50 de casados. Foi bom celebrar com a família, juntar gerações à volta da mesa.
Do lado de fora da janela os pássaros do costume assinalam-me a insónia. Quando ouço este canto, em todo o caso bastante agradável, sei que é muito tarde. Têm o ritmo de uma conversa, frases melódicas e um silêncio seguido de resposta. Leio o livro do Manuel Abrantes. É um primeiro romance excepcional.
Greve dos jornalistas, finalmente. Nos mais de vinte anos desde que terminei o curso de jornalismo não houve uma única greve do sector em Portugal. De facto, não havia greve de jornalistas há cerca de 40 anos. Numa profissão com condições tão precárias, já vem tarde. Com a ascensão dos spin dictators, o ataque a whistleblowers e figuras como Assange e a jornalistas como Jamal Khashoggi, nunca foi tão importante como agora haver jornalismo independente e redações com alguma resiliência em relação às pressões económicas e políticas. Têm a minha solidariedade. Não podemos ficar entregues ao fake e ao spin e os jornalistas têm de ser devidamente recompensados e a sua actividade dignificada.
Mais intrigante do que a origem das palavras é a história de como muda o seu significado. Ao traduzir um trecho, vou procurar sinónimos de deferência, palavra precisa mas feia. Deparo-me com condescendência e apercebo-me que significa também, segundo Priberam, “Flexibilidade de carácter que se acomoda ao gosto e vontade doutros”. Condescender, imagino, será o que um servo, um criado, um subalterno faria em relação aos desejos e ordens de um superior. Talvez a filigrana do discurso, necessária para acudir ao engolir de sapos e à adequação a caprichos irrazoáveis, tenha criado um tom que ainda hoje reconhecemos como sarcástico. Algo semelhante aconteceu com a expressão LOL, ocorre-me. LOL, inicialmente abreviação de “laughing out loud” era usado para expressar riso por escrito. O que significa que poderíamos escrevê-lo sem rir. Dito, como agora, de viva voz, sem riso, é imediatamente sarcástico. Ou, mais precisamente, condescendente.
Estou 25 dias atrasados em relação à realidade do calendário. Datar é confundir. É talvez o facto mais revelador em todo este diário online.
A garota não e a sua Canção a Zé Mário Branco comovem-me. A primeira vez que a escuto fico numa sintonia dorida, uma solidariedade urgente. Falha-me a voz. Tento cantar, consigo apenas acompanhar com os acordes na guitarra. Não nos vão roubar de novo o país, estes que agora se chegam ao poder. Não vamos deixar o ódio desgovernar o que resta da nossa democracia. É tempo de união e resistência, de defesa de todos, sejam quais forem as suas características pessoais ou de grupo. Porque esta doença chegou primeiro a outros países, sabemos como os seus promotores a espalham, como incitam à discórdia, como mentem e manipulam, como distraem com demagogia e populismo. É urgente a verdade. E sim, como diz a canção, é muito querida a liberdade.
Tempo de ler Spin Dictators, de Sergei Guriev e Daniel Treisman. Em Portugal há um aspirante a este poleiro, há que nos inocularmos. A tradução portuguesa é “A Ditadura Adaptada ao Século XXI”, e foi publicada recentemente pela chancela Desassossego da Saída de Emergência.