Kroeber

#001622 – 13 de Fevereiro de 2024

Quase um mês de atraso deste meu diário em relação ao calendário. Ontem soubemos os resultados das eleições. A democracia não convence cerca de um milhão de portugueses. Os tempos que se avizinham serão difíceis e importantes.

#001621 – 12 de Fevereiro de 2024

O novo filme de Yorgos Lanthimos é incrível. Não li o livro de Alasdair Gray, por isso só consigo escrever sobre a adaptação ao cinema de Poor Things. A forma mais resumida de pensar na narrativa foi de vê-la como um anti-Frankenstein. Na obra-prima de Mary Wollstonecraft Shelley, a criatura é um ser existencialista. Sofre porque não encontra um lugar no mundo, tem de lidar com o horror de conhecer o seu criador, que não lhe dá respostas, nem sequer o aceita. Sente-se absolutamente deslocada, sem propósito. É uma espécie de espelho para a angústia existencial humana. A criatura é como um humano que desperta para a tremenda solidão de existir. Não é isso que acontece com Bella Baxter.

A primeira diferença é que ao contrário da criatura de Shelley, Bella Baxter não é feita de pedaços de corpos humanos, não é uma manta de retalhos. O cientista, em Poor Things, traz de volta para a vida o corpo de uma mulher, o corpo inteiro de uma mulher. A forma de o fazer é macabra, mas encerra uma metáfora. Na história, a mulher que se suicidou estava grávida. O cientista que traz o seu corpo de volta à vida transplanta o cérebro do feto para o corpo da mãe. Neste sentido, é a mulher que morreu que concebeu e deu vida nova à mulher que renasce. E a história de facto tem esse ponto de vista, o de uma mulher que se descobre e determina a si própria. Não haverá uma relação de criatura-criador, como em Frankenstein.

É um filme tremendamente feminista. Assistimos ao crescimento interior de Bella Baxter, já que o corpo desde o início é o de uma mulher adulta. Testemunhamos o despertar de uma mulher para o que é ser mulher. E funciona muito bem esta premissa à Frankenstein. A mente que se vai desenvolvendo naquele corpo de mulher não tem nenhum conhecimento nem nenhum apego às convenções Vitorianas ou a quaisquer outras. A forma como descobre a sexualidade e ao mesmo tempo as expectativas masculinas sobre o seu comportamento é inspiradora. Vai evoluindo de uma certa ingenuidade desarmante, em que nem sequer entende as pretensões masculinas de a dominar, para uma força fundamentada na sua limitada experiência e no crescente conhecimento do mundo e da filosofia. É bastante divertido e revelador ver como o homem que primeiro teve sexo com ela e que se sentia como o tutor não só da sua sexualidade mas da sua autonomia se desagrega, por não ter nenhum argumento para restringir o crescimento de Bella Baxter.

O que é ainda mais impressionante é como depois Bella Baxter descobre como foi gerada, como vai à procura do ex-marido, que a tinha levado ao suicídio. Aí tem de confrontar tudo, a violência patriarcal em que a sua vida aristocrática encaixava, a forma estranha como a sua mãe lhe “ofereceu” o corpo em que veio ao mundo. A mulher que lida com a sua situação social e familiar é uma mulher nova. A novidade vem apenas de ter podido crescer sem as restrições habituais que a cultura usa para condicionar o desenvolvimento de um ser humano. É a sua inicial completa desadequação que lhe permite olhar para as relações de poder à sua volta com um olhar novo. Embora a sensibilidade pós-moderna da narrativa talvez pudesse aborrecer Zizek, há algo, central no filme, que me fez lembrar do filósofo esloveno. O cientista em Poor Things é muito diferente de Frankenstein. É um mestre à Lacan. Segundo Zizek, referindo-se a Lacan, o papel de um mestre é o de permitir ao aprendiz (a palavra não é bem aprendiz, mas não me recordo de outra melhor) superar-se a si próprio. E é esse tipo de relação, inicialmente, que existe entre o cientista e Bella Baxter. E não a relação de criador-criatura. Ainda estou a digerir o filme e talvez leia agora o livro. Tenho muita curiosidade em falar com outras pessoas que o tenham visto.

#001620 – 11 de Fevereiro de 2024

Primeiro World Cup de Wingfoil em Cabo Verde. É incrível ver novos desportos nascer. Especificamente estes desportos de fusão. Como Wakeskate ou Wingfoil. Tão entusiasmantes como o Sepak Takraw.

#001619 – 10 de Fevereiro de 2024

Depois de partir o coração a assistir a Holocausto Brasileiro, escuto um debate sobre o Bem e o Mal. E, mesmo no final, recupero um pouco de sanidade com o riso, que partilho, que Zizek consegue provocar num ex-Bispo da Cantuária, ao citar São Agostinho numa piada sobre a ereção.

#001618 – 09 de Fevereiro de 2024

The Owl in Daylight é o mais incrível livro inexistente que li. Imagino-o a figurar na Library of Dream, que Neil Gaiman escreveu nas páginas de Sandman, essa biblioteca de todos os livros inacabados. Lugar de eleição para as obras inexistentes dos autores que Vila-Matas descreve em Bartleby & Companhia. Mas K. Dick é um autor real, importante para lá da ficção científica. E este não-livro de Philip K. Dick é real. Sabemos da sua história, da sua génese, da dificuldade de o escrever nas entrevistas com Gwen Lee, editadas com o maravilhoso título “What if our world is their Heaven”? Não existindo, li sobre ele nas palavras do autor e de alguma forma foi como se o lesse ainda mais profundamente. Quero forçar uma comparação com o documentário sobre o inexistente Dune de Jodorowsvki, mas felizmente não me sai nada. Estou cansado depois de doze horas nas urgências, ao menos ponho a leitura em dia.

#001617 – 08 de Fevereiro de 2024

Há talvez uns dois meses, acordei a meio da noite com uma história na cabeça. No meio do quarto, cheio de sono, não encontrei caneta. Nem consegui acender a luz. De olhos remelentos mas determinado, acabei por usar o telemóvel para escrever a sinopse de um conto, que aqui transcrevo, com algumas correções e acrescentos, e que é a única narrativa, à data, que escrevi sobre ou com fantasmas. É uma história de amor, triste. Aqui vai. Talvez lhe chame “O pesadelo possível”, se não surgir melhor nome.

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Laura era uma fantasma desajeitada. Tropeçava, caindo, através das pessoas vivas. Esquecia-se da sua imaterial presença, falava como se esperasse resposta. Nem sabia bem para onde ia. Perdeu, ao morrer, toda a noção do tempo. Não faz ideia que há um instante atrás ainda vivia.

Olha em redor, vendo apenas o mundo dos vivos. À sua frente Luísa, que está viva. Mas em grande dor, debruçada sobre o cadáver de Laura, o seu cadáver. Quer abraçá-la. Dizer-lhe: estou aqui. Mas já não está. Há meros instantes, atirou-se para a frente de um autocarro e salvou, empurrando, a mulher que ama.

Nessa noite aproxima-se da cama de Luísa, que dorme depois de lhe injetarem tranquilizantes. Olha para ela e tudo muda à sua volta. Chega a pensar que finalmente estará no purgatório. Mas apercebe-se que está dentro do sonho de Luísa. Fala para ela, no sonho, e diz-lhe que está viva. Logo a seguir vê o desespero da sua viúva, que acorda e se lembra de novo que Laura morreu por ela. A culpa é tão grande como a perda.

Nas noites seguintes, visita-a nos sonhos, decidida a convencê-la que, não estando viva, não desapareceu e ainda a ama. Passa a assombrar o sono e, por consequência, a vida da sua amada. Uma noite, durante o sonho, Luísa finalmente acredita e nesse momento acorda. Depois de tanto escutar a mesma voz, a dizer-lhe com a mesma convicção, estou perto, morri mas estou perto, acredita. Isto não pode ser um sonho, é mesmo Laura. Acorda em sobressalto, assustada com a a crueldade desta esperança.

Laura, fantasma, grita: adormece, junta-te a mim, adormece. Depois de muitas horas, finalmente o cansaço leva Laura a adormecer e o sonho torna de novo Luísa real. É pouco, mas mesmo isso se dissolve, açúcar inútil a cair num mar de escuridão. Luísa vai passar sempre a acordar, como se assustada de feliz, assim que reencontra Laura num sonho.

#001616 – 07 de Fevereiro de 2024

Estou há seis horas e meia nas urgências. Entrei pouco antes das 21h00. Já me foi dito que ficarei até de manhã, porque não há ecografias de noite. E penso nos políticos que querem privatizar a saúde e atirar-nos aos lobos das seguradoras, como nos países em que milhões de pessoas não têm acesso a cuidados de saúde. Tenho espondilite anquilosante, problemas nos rins, sou bipolar e recupero agora de uma pequena cirurgia num local delicado e surgiu-me um hematoma. Sempre que tive de vir aqui, incluindo hoje, fui tratado com dignidade e profissionalismo. Quero que os profissionais de saúde ganhem mais e tenham o descanso necessário. E temo um futuro próximo em que os cuidados de saúde, como de resto já tanta coisa nos dias de hoje, sejam vistos não como um direito mas como um privilégio.

#001615 – 06 de Fevereiro de 2024

Deixo aqui momentos para futuras viagens no tempo. Não tanto viagens, mas vislumbres. E o atraso com que escrevo cada instantâneo do passado vai confundir um pouco as coisas. Pouco importa. A diferença entre um e outro dia, entre uma noite e a anterior, atenua-se com o passar dos anos.

#001614 – 05 de Fevereiro de 2024

Preocupado com a saúde, coisa que me ocupa diariamente, descuro a escrita neste diário. Hoje é 27 de Fevereiro e venho de novo às urgências. Preparo-me para passar aqui horas, para que um médico me examine, depois de a recuperação da cirurgia não estar a correr bem. Pulseira amarela, quatro horas de espera previstas. Memórias Póstumas de Brás Cubas para ler e terminar.

#001613 – 04 de Fevereiro de 2024

Severance é brilhante. Mas além disso toca-me de forma profunda, unindo o que tenho vindo a ser política e emocionalmente. Não me lembro de outra série de ficção científica assim. Ainda estou a tentar digerir o que vi e falta-me assistir aos dois últimos episódios. Mas há já duas coisas que me ocorre dizer.

A primeira é que a série não se encaixa na sensibilidade identitária que o meu lado político, a esquerda, tem vindo a deixar tornar-se mainstream. Sendo uma distopia, o universo em que as personagens se movem é totalmente desprovido de racismo ou sexismo, ou de qualquer outro tipo de descriminação baseada nas características pessoais. O que fica claro é que o grande separador político é o poder. O fosso é entre os que dominam e os que são subjugados. E por isso o que pode unir as pessoas não é essa fragmentada ideia de camadas de identidade que se partilham com algumas pessoas e não com outras. O que nos une é a vontade de autonomia política, o desejo de liberdade e respeito, de vivermos segundo as nossas próprias aspirações, sem coação.

A segunda nota é sobre algo que me toca de forma ainda mais profunda. Escrevo precisamente antes de terminar o sétimo episódio. O momento em que Irving diz, “let's burn this place to the ground”. Irving era o mais fervoroso empregado, completamente imerso na meta-religiosidade que faz do handbook da empresa uma bíblia. Tinha sempre uma citação dos fundadores para cada ocasião e via os desvios à ideologia corporativa como heresias. E apaixonou-se. Desde que conheceu Burt, que renasceu. Durante um tempo, conciliou a paixão que nascia em si com a devoção pela distópica empresa em que trabalha. Mas o momento de ruptura dá-se quando é a própria estrutura, a lógica fundadora da Lumon que impede a consumação do amor entre Irving e Burt. Isto comove-me porque sinto que nada há de mais utópico e revolucionário que o amor entre duas pessoas. E no amor de Irving por Burt há essa faísca revolucionária, que muda Irving e o faz agir no mundo.