Kroeber

#001626 – 17 de Fevereiro de 2024

Supertubos em Peniche, partidos em Belém.

#001625 – 16 de Fevereiro de 2024

A garota não e a sua Canção a Zé Mário Branco comovem-me. A primeira vez que a escuto fico numa sintonia dorida, uma solidariedade urgente. Falha-me a voz. Tento cantar, consigo apenas acompanhar com os acordes na guitarra. Não nos vão roubar de novo o país, estes que agora se chegam ao poder. Não vamos deixar o ódio desgovernar o que resta da nossa democracia. É tempo de união e resistência, de defesa de todos, sejam quais forem as suas características pessoais ou de grupo. Porque esta doença chegou primeiro a outros países, sabemos como os seus promotores a espalham, como incitam à discórdia, como mentem e manipulam, como distraem com demagogia e populismo. É urgente a verdade. E sim, como diz a canção, é muito querida a liberdade.

#001624 – 15 de Fevereiro de 2024

Tempo de ler Spin Dictators, de Sergei Guriev e Daniel Treisman. Em Portugal há um aspirante a este poleiro, há que nos inocularmos. A tradução portuguesa é “A Ditadura Adaptada ao Século XXI”, e foi publicada recentemente pela chancela Desassossego da Saída de Emergência.

#001623 – 14 de Fevereiro de 2024

Acho que estou a ficar velho. Começo a gostar dos Beatles.

#001622 – 13 de Fevereiro de 2024

Quase um mês de atraso deste meu diário em relação ao calendário. Ontem soubemos os resultados das eleições. A democracia não convence cerca de um milhão de portugueses. Os tempos que se avizinham serão difíceis e importantes.

#001621 – 12 de Fevereiro de 2024

O novo filme de Yorgos Lanthimos é incrível. Não li o livro de Alasdair Gray, por isso só consigo escrever sobre a adaptação ao cinema de Poor Things. A forma mais resumida de pensar na narrativa foi de vê-la como um anti-Frankenstein. Na obra-prima de Mary Wollstonecraft Shelley, a criatura é um ser existencialista. Sofre porque não encontra um lugar no mundo, tem de lidar com o horror de conhecer o seu criador, que não lhe dá respostas, nem sequer o aceita. Sente-se absolutamente deslocada, sem propósito. É uma espécie de espelho para a angústia existencial humana. A criatura é como um humano que desperta para a tremenda solidão de existir. Não é isso que acontece com Bella Baxter.

A primeira diferença é que ao contrário da criatura de Shelley, Bella Baxter não é feita de pedaços de corpos humanos, não é uma manta de retalhos. O cientista, em Poor Things, traz de volta para a vida o corpo de uma mulher, o corpo inteiro de uma mulher. A forma de o fazer é macabra, mas encerra uma metáfora. Na história, a mulher que se suicidou estava grávida. O cientista que traz o seu corpo de volta à vida transplanta o cérebro do feto para o corpo da mãe. Neste sentido, é a mulher que morreu que concebeu e deu vida nova à mulher que renasce. E a história de facto tem esse ponto de vista, o de uma mulher que se descobre e determina a si própria. Não haverá uma relação de criatura-criador, como em Frankenstein.

É um filme tremendamente feminista. Assistimos ao crescimento interior de Bella Baxter, já que o corpo desde o início é o de uma mulher adulta. Testemunhamos o despertar de uma mulher para o que é ser mulher. E funciona muito bem esta premissa à Frankenstein. A mente que se vai desenvolvendo naquele corpo de mulher não tem nenhum conhecimento nem nenhum apego às convenções Vitorianas ou a quaisquer outras. A forma como descobre a sexualidade e ao mesmo tempo as expectativas masculinas sobre o seu comportamento é inspiradora. Vai evoluindo de uma certa ingenuidade desarmante, em que nem sequer entende as pretensões masculinas de a dominar, para uma força fundamentada na sua limitada experiência e no crescente conhecimento do mundo e da filosofia. É bastante divertido e revelador ver como o homem que primeiro teve sexo com ela e que se sentia como o tutor não só da sua sexualidade mas da sua autonomia se desagrega, por não ter nenhum argumento para restringir o crescimento de Bella Baxter.

O que é ainda mais impressionante é como depois Bella Baxter descobre como foi gerada, como vai à procura do ex-marido, que a tinha levado ao suicídio. Aí tem de confrontar tudo, a violência patriarcal em que a sua vida aristocrática encaixava, a forma estranha como a sua mãe lhe “ofereceu” o corpo em que veio ao mundo. A mulher que lida com a sua situação social e familiar é uma mulher nova. A novidade vem apenas de ter podido crescer sem as restrições habituais que a cultura usa para condicionar o desenvolvimento de um ser humano. É a sua inicial completa desadequação que lhe permite olhar para as relações de poder à sua volta com um olhar novo. Embora a sensibilidade pós-moderna da narrativa talvez pudesse aborrecer Zizek, há algo, central no filme, que me fez lembrar do filósofo esloveno. O cientista em Poor Things é muito diferente de Frankenstein. É um mestre à Lacan. Segundo Zizek, referindo-se a Lacan, o papel de um mestre é o de permitir ao aprendiz (a palavra não é bem aprendiz, mas não me recordo de outra melhor) superar-se a si próprio. E é esse tipo de relação, inicialmente, que existe entre o cientista e Bella Baxter. E não a relação de criador-criatura. Ainda estou a digerir o filme e talvez leia agora o livro. Tenho muita curiosidade em falar com outras pessoas que o tenham visto.

#001620 – 11 de Fevereiro de 2024

Primeiro World Cup de Wingfoil em Cabo Verde. É incrível ver novos desportos nascer. Especificamente estes desportos de fusão. Como Wakeskate ou Wingfoil. Tão entusiasmantes como o Sepak Takraw.

#001619 – 10 de Fevereiro de 2024

Depois de partir o coração a assistir a Holocausto Brasileiro, escuto um debate sobre o Bem e o Mal. E, mesmo no final, recupero um pouco de sanidade com o riso, que partilho, que Zizek consegue provocar num ex-Bispo da Cantuária, ao citar São Agostinho numa piada sobre a ereção.

#001618 – 09 de Fevereiro de 2024

The Owl in Daylight é o mais incrível livro inexistente que li. Imagino-o a figurar na Library of Dream, que Neil Gaiman escreveu nas páginas de Sandman, essa biblioteca de todos os livros inacabados. Lugar de eleição para as obras inexistentes dos autores que Vila-Matas descreve em Bartleby & Companhia. Mas K. Dick é um autor real, importante para lá da ficção científica. E este não-livro de Philip K. Dick é real. Sabemos da sua história, da sua génese, da dificuldade de o escrever nas entrevistas com Gwen Lee, editadas com o maravilhoso título “What if our world is their Heaven”? Não existindo, li sobre ele nas palavras do autor e de alguma forma foi como se o lesse ainda mais profundamente. Quero forçar uma comparação com o documentário sobre o inexistente Dune de Jodorowsvki, mas felizmente não me sai nada. Estou cansado depois de doze horas nas urgências, ao menos ponho a leitura em dia.

#001617 – 08 de Fevereiro de 2024

Há talvez uns dois meses, acordei a meio da noite com uma história na cabeça. No meio do quarto, cheio de sono, não encontrei caneta. Nem consegui acender a luz. De olhos remelentos mas determinado, acabei por usar o telemóvel para escrever a sinopse de um conto, que aqui transcrevo, com algumas correções e acrescentos, e que é a única narrativa, à data, que escrevi sobre ou com fantasmas. É uma história de amor, triste. Aqui vai. Talvez lhe chame “O pesadelo possível”, se não surgir melhor nome.

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Laura era uma fantasma desajeitada. Tropeçava, caindo, através das pessoas vivas. Esquecia-se da sua imaterial presença, falava como se esperasse resposta. Nem sabia bem para onde ia. Perdeu, ao morrer, toda a noção do tempo. Não faz ideia que há um instante atrás ainda vivia.

Olha em redor, vendo apenas o mundo dos vivos. À sua frente Luísa, que está viva. Mas em grande dor, debruçada sobre o cadáver de Laura, o seu cadáver. Quer abraçá-la. Dizer-lhe: estou aqui. Mas já não está. Há meros instantes, atirou-se para a frente de um autocarro e salvou, empurrando, a mulher que ama.

Nessa noite aproxima-se da cama de Luísa, que dorme depois de lhe injetarem tranquilizantes. Olha para ela e tudo muda à sua volta. Chega a pensar que finalmente estará no purgatório. Mas apercebe-se que está dentro do sonho de Luísa. Fala para ela, no sonho, e diz-lhe que está viva. Logo a seguir vê o desespero da sua viúva, que acorda e se lembra de novo que Laura morreu por ela. A culpa é tão grande como a perda.

Nas noites seguintes, visita-a nos sonhos, decidida a convencê-la que, não estando viva, não desapareceu e ainda a ama. Passa a assombrar o sono e, por consequência, a vida da sua amada. Uma noite, durante o sonho, Luísa finalmente acredita e nesse momento acorda. Depois de tanto escutar a mesma voz, a dizer-lhe com a mesma convicção, estou perto, morri mas estou perto, acredita. Isto não pode ser um sonho, é mesmo Laura. Acorda em sobressalto, assustada com a a crueldade desta esperança.

Laura, fantasma, grita: adormece, junta-te a mim, adormece. Depois de muitas horas, finalmente o cansaço leva Laura a adormecer e o sonho torna de novo Luísa real. É pouco, mas mesmo isso se dissolve, açúcar inútil a cair num mar de escuridão. Luísa vai passar sempre a acordar, como se assustada de feliz, assim que reencontra Laura num sonho.