#001486 – 30 de Setembro de 2023
O comboio encosta-se à sua velocidade de embalar. O sol atravessa as janelas com um vigor fora de estação. O coração aceita os efeitos do tempo. O pensamento contradiz-se, e nem percebe bem o que importa.
O comboio encosta-se à sua velocidade de embalar. O sol atravessa as janelas com um vigor fora de estação. O coração aceita os efeitos do tempo. O pensamento contradiz-se, e nem percebe bem o que importa.
Verão fora de tempo. Caminhada, já que não posso andar de bicicleta até à cirurgia. Pelo caminho, sol, muito sol, árvores e dois gatos simpáticos. E uma noção, muito nítida, de gratidão pelos amigos que tenho. Caminhar ajuda o pensamento a encaixar-se nos espaços entre emoções.
Sou bipolar, hipertenso, provavelmente autista, bissexual escondido bem fundo no armário, tenho espondilite anquilosante, sou impotente e doente renal. Mas nada disso me define. Gosto do mar, de ficção científica, de abraços, gosto muito de beijos, do silêncio no meio das árvores, de bicicleta e patins, de surf embora não surfe, de skate embora não me equilibre num skate. Tenho medo da dor, embora tenha tatuagens que demoraram mais de 10 horas a tatuar, tenho medo da insanidade, tenho medo de cobras. Não sou patriota, nem religioso. Não sou de terra nenhuma, nem minimamente bairrista. Vivi em sítios diferentes e não nasci neste país. Sinto-me em casa onde estão os meus amigos e sou muito ligado à minha família mas nada conservador. Vejo no moralismo um veneno e não acredito que a ética deva depender de uma ideologia ou espiritualidade. Sou anarquista e gosto da palavra utopia. Como o David Graeber, acredito que devemos agir como se já fossemos livres. E como a Ursula K. Le Guin, acredito que a recompensa do escritor é a liberdade. Dou pouca importância às fronteiras mas muita à língua e à história. Como o George Steiner, acredito que uma língua transporta a história de um povo. Choro com facilidade, sobretudo de felicidade. Sou talvez demasiado empático, o que me cria dificuldades. Não esqueço, infelizmente, de quanto me magoaram. Também já magoei outras pessoas, que não o mereciam. Apaixono-me raramente e nunca me desapaixonei. Sou difícil de aturar. Falo muito mas muitas vezes não digo o que é mais importante, na altura que faz sentido. Sou imaturo. Sou irresponsável com o dinheiro. Sou leal com o meu empregador embora seja anti-capitalista. Lido mal com a ambiguidade, às vezes nem sequer entendo o que me dizem. Prefiro o que é literal, direto, inequívoco. Socialmente sou pouco hábil embora me agrade muito conhecer uma pessoa nova. Não sei se vou publicar este texto, sei que a internet tem uma memória longa e os trolls são cada vez mais infecciosos. Mas acho que o farei. A reserva com que geralmente publico terá aqui uma pausa, breve. Sinto-me vulnerável, o que me dá uma confiança estúpida, de quem acha que não se magoará ainda mais, de quem se sente livre, ou assim quer agir.
The Quadruple Object, do Graham Harman, quarta temporada de Sex Education. Ombro a ser cuidado por mãos que curam. Dióspiros da árvore que o meu pai plantou. Volume 11 de Saga, do Brian K. Vaughan.
Amanhã osteopata. São muitas mazelas, nem todas físicas. Mas é sempre o corpo o fulcro de tudo. A minha forma de evitar o dualismo é acreditar no corpo, como o local do pensamento, do sentimento, da acção, da memória. Há apenas corpo, sobretudo corpo, ainda corpo. Talvez a consciência seja algo aquém do corpo. O lugar primordial, antes que uma dor, uma memória específicas nos distraiam do que é tudo. Ser consciente talvez seja esse momento antes de o corpo ser separação, esse lugar momento em que não me separo de tudo o resto, de todos os outros. Estas mazelas, nem todas físicas, são uma distração. Mas não me definem. Não são sequer um contorno, uma fronteira. São momentos de queda e vulnerabilidade, de reconhecimento de que existo. É necessário o instante a seguir, em que reconheço que não sou o centro de tudo.
Por duas vezes, encontrei o amor da minha vida. Não sei se tenho fôlego para me abrir assim ao mundo, ao sofrimento, à felicidade, de novo. Mas sei já que não é impossível, que sou capaz dessa vulnerável força de viver, esse voo na direção de um outro céu, esse encontro com o desconhecido, até com o que desconheço em mim. Não preciso de deuses nem de superstições nem de mitologias românticas para acreditar no amor. Basta-me a memória. E com um pouco mais de sanidade serei até capaz de não desistir.
Tudo o que não escreverei aqui, tudo o que sinto e não sei descrever, o que vivo e não vou repetir, o que sou e não posso descobrir, o que desejo e me destrói, o que tenho e não me serve, o que sonho e não me motiva, o que penso e me paralisa, tudo o que é e não quero. Existe, demais.
Talvez a felicidade seja uma ameaça que a depressão não consegue suportar. A possibilidade de futuro é também a hipótese de que as coisas serão diferentes, que eu serei diferente, e ainda assim o mundo fará sentido. O apego ao que fui faz-me agarrar à dor, como se ela melhor me definisse. Mas sou do mais que as feridas por sarar. E há futuro.
Tinha-me esquecido das semelhanças entre Sense8 e The OA. Deste optimismo que acredita que é possível formar uma tribo, no meio do trauma, e ser ainda feliz, resistindo ferozmente ao cinismo e ao medo.